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O não humano no debate da comunidade mundial de valores

 

UM DIÁLOGO INTERNORMATIVO COSMOPOLITA RUMO À QUEBRA DO PARADIGMA ANTROPOCENTRICO: O NÃO HUMANO NO DEBATE DA COMUNIDADE MUNDIAL DE VALORES

Karen Emilia Antoniazzi Wolf

Resumo: Este artigo objetiva um estudo acerca de matrizes teóricas a partir da extensão de direitos aos não humanos pelo movimento cosmopolita universal, reformulando conceitos de soberania, personalidade jurídica e princípios da dignidade e da solidariedade. Para tanto, questiona-se: o cosmopolitismo serve de ferramenta para a inclusão do animal não humano como uma nova pessoa (um novo ator, um novo sujeito) titular de direitos no mundo globalizado? O trabalho está estruturado em duas seções. A primeira discorre sobre a relativização da soberania estatal no arranjo do Estado moderno e a segunda disserta sobre a revisitação dos conceitos de personalidade jurídica, da dignidade e da solidariedade numa ordem cosmopolita. Encerra a respeito de possíveis respostas para a possibilidade de garantir direitos aos animais não humanos nesse universo. Utilizou-se o método de abordagem dialético, o procedimento tipológico e a técnica de fichamentos e resumos.

Palavras-chave: Cosmopolita, Dignidade, Personalidade jurídica, Soberania, Solidariedade.

Abstract: This article aims at a study about theoretical matrices from the extension of rights to non-humans by the universal cosmopolitan movement, reformulating concepts of sovereignty, legal personality and principles of dignity and solidarity. Therefore, the question is: does cosmopolitanism serve as a tool for the inclusion of the non-human animal as a new person (a new actor, a new subject) with rights in the globalized world? The work is structured in two sections. The first discusses the relativization of state sovereignty in the arrangement of the modern state and the second discusses the revisiting of the concepts of legal personality, dignity and solidarity in a cosmopolitan order. It closes about possible responses to the possibility of guaranteeing rights to non-human animals in this universe. The dialectical approach method, the typological procedure and the file and summary technique were used.

Keywords: Cosmopolity, Dignity, Legal personality, Sovereignty, Solidarity.

INTRODUÇÃO

Os tempos da era pós moderna não possuem limites e nem respeitam espaços. O certo se tornou incerto, a cronologia dogmática passou para uma instantaneidade líquida, forçando o Estado a conviver com diferentes atores em tempos diferenciados, dividindo espaços pautados por uma multidimensionalidade. Há uma geração de fadiga dos tradicionais conceitos jurídicos de soberania estatal e solidariedade entre povos e raças, na medida em que para ser possível trabalhar a paz mundial, numa tentativa de ordem justa, é imperativo rever o apego à tradição, dando uma nova roupagem ao comunitarismo em um contexto moderno.

Os pilares que sustentavam o mundo, calcados numa divisão de pensamento ocidente versus oriente, precisam ser desencastelados, pois os saberes hoje são fruto de uma modernidade reflexiva, que ultrapassam os bancos acadêmicos. A cultura vertical, linearmente hierarquizada, passa a ser organizada em rede, horizontalizando-se com a moral e com o jurídico, já que o discurso cosmopolita começa a ganhar força, notadamente na ideia de revisitação de conceitos e instituições que são necessários à superação do dualismo global/local, nacional/internacional.

O sociólogo Ulrich Beck (2004), ao tratar dessa premente indispensabilidade, dita que é fundamental aceitar a diversidade como forma de integração dos povos, ao tratar de temas sobre universalismo, nacionalismo e cosmopolitismo, chegando à convicção de que somente mediante completa aceitação do outro, com suas diferenças, é que será possível alcançar a uma nova máquina de felicidade.

Percebe-se assim que a diferença entre os povos, que antigamente deu margem a uma imposição de dominação colonial, baseada numa hierarquia totalitária, hoje é sinônimo de respeito e integração, posto que somente o reconhecimento de igualdades desiguais abrirá o caminho para uma paz mundial. É imperativo que se converta o princípio denominado por Beck, o esto o eso, no que ele chama de princípio no sólo sino también. Ao fazer esse reconhecimento dar-se-á novas vestes à solidariedade, tanto moral, quanto juridicamente, forçando as estruturas estatais nacionais a abraçarem uma modernização reflexiva calcada num reconhecimento mútuo.

Menciona Beck, ainda, que a evolução das sociedades modernas (nascidas no berço dos Estados Soberanos) se caracteriza por uma descontinuidade fundamental (política, científica e economicamente), sendo necessário que surjam novas instituições calcadas no cosmopolitismo reflexivo, notadamente porque vivemos em tempos de globalização. Esse novo cenário cosmopolita com proliferação de vários atores causa impactos nas diversas formas de interação, de comunicação e de cooperação, fazendo com que surjam novos sistemas de vigilância e de controle, os quais refogem ao conceito de Estado Democrático de Direito. Ressurge a ideia dioginiana de cidadão do mundo, para consolidar a premissa de que a ascensão dos direitos do homem, incluindo o das minorias, representa um certo declínio do Estado-Nação.

E, nesse cenário, importante recordar que a figura humana sempre esteve no centro das relações nacionais e internacionais. Os símbolos dos seus direitos ainda encontram albergue na cultura ética da hospitalidade kantiana. Assim, o Estado, como organização formal dotado de unidade administrativa interna e de destacada soberania, é repensado e costurado por um modelo multissetorial, começando a partilhar novos espaços dentro e fora de territórios delimitados.

Ao mesmo tempo, a sociedade civil, no exercício de sua liberdade, começa a atuar em diversas áreas, dando um novo panorama a quem são os sujeitos (pessoas) titulares de direitos. O primado da igualdade, que uniformiza e torna as diferenças invisíveis passa a sustentar uma nova bandeira: da essência comum a todos os seres vivos sencientes (humanos e não humanos) decorrem de direitos fundamentais. É imperativo abrir espaço para uma sociedade plural, onde será ambíguo estabelecer regras que reconhecem sujeitos menores, não aptos a desfrutar da plenitude de seus direitos. A âncora do Estado-Gerente, que mantém a estrutura unificada, deve ser reformada pelo viés da alta modernidade, forçando o reconhecimento do diferente e calcando no homem o dever de abandono à coisificação, de humanos e não humanos.

Para tanto, indaga-se: o cosmopolitismo serve de ferramenta para a inclusão do animal não humano como uma nova pessoa (um novo ator, um novo sujeito) titular de direitos no mundo globalizado? O trabalho está estruturado em duas seções. A primeira discorre sobre a relativização da soberania estatal no arranjo do Estado moderno. A segunda disserta sobre os conceitos de personalidade jurídica, dignidade solidariedade numa ordem cosmopolita.

Utilizou-se o método de abordagem dialético, o procedimento tipológico e a técnica de fichamentos e resumos, baseando-se, fundamentalmente, no estudo bibliográfico sobre o tema em análise, perpassando por abordagens de cunho teórico. A matriz teórica está baseada nas obras de Boaventura de Sousa Santos, Ulrich Beck e Otfried Höffe. Ressalta-se que a proposta metodológica apresentada não tem a pretensão de exaurir todas as possibilidades que poderão surgir no decorrer da pesquisa. Sobre a utilidade da teoria, Foucault afirma que uma teoria tem que ser uma caixa de ferramentas, e nada tem a ver com o significante, mas é preciso que ela sirva e, mais, que funcione, não apenas para ela mesma (1979).

1. DO AFROUXAMENTO DA SOBERANIA ESTATAL NO ARRANJO DO ESTADO MODERNO

O mundo da pós modernidade impõe novas delimitações às fronteiras estatais e a abrangência dos poderes de soberania aos povos que, sob a égide jurídico-normativa de suas nações, possuem direitos diversos nos seus panteões internos, frutos de culturas diferenciadas. Na busca de uma valoração das pessoas não humanas num universo cosmopolitizado, é necessário traçar um debate acerca do possível afrouxamento da soberania dos Estados, bem como da revisitação de conceitos jurídico-normativos no campo dos direitos.

O conceito de soberania vem passando por uma reformulação em meio à época de mundialização e globalização, notadamente em relação às políticas de mercado (lex economica) e à proliferação das organizações não governamentais e à formação dos blocos econômicos. Os novos processos de integração influenciam o remodelamento do tradicional conceito de soberania enquanto reunião de competências individuais do Estado-Nação. Nesse viés, pertinente colacionar a afirmação de Castells (1999), para quem, no terceiro milênio, os Estados sobreviverão, mas não as suas soberanias.

Nesse contexto, o significado clássico de soberania, enquanto o poder absoluto e perpétuo de uma república, como uma qualidade estatal de autodeterminação absoluta, indivisível, imprescritível e inalienável, merece ser relativizado, posto que somente o povo é merecedor e conhecedor de seu próprio poder. A alma estatal de titularidade soberana do Estado deve agora pertencer a uma base democrática alargada, afrouxando as fronteiras territoriais e coloniais, isenta de alguns limites jurídicos, a fim de passar aos povos um poder de nacionalidade substancial (moralidade). É a expressão da vontade geral e não da vontade particular utilitarista individual que merece a proteção jurídica dos Estados.

Entendida por esse ângulo, a soberania classifica-se como o atributo de poder que se sobrepõe a qualquer outro. É um certo grau de poder supremo aos demais, que não depende de ninguém e não pode ser igualado aos demais, tanto interna, quanto externamente. Partindo do pensamento de Jean Bodin (1967) de que a soberania é o significado de poder absoluto e perpétuo de uma república, passando por Hobbes (2004) e seu Leviatã, para chegar em Rousseau (2003), extrai-se que a idoneidade do poder popular é o único instrumento legitimador para a salvaguarda dos fundamentos constitucionais.

Contudo, apenas com as revoluções americana e francesa é que se pode dizer que o constitucionalismo moderno trouxe a ideia de um poder constituinte, do qual deriva a função legislativa, firmando o argumento de que somente um Judiciário independente irá conciliar a constituição e a soberania popular. Assim, aproximado está o (até então) temível elo entre o povo (como potência democrática) e o processo político.

A relação entre Constituição e democracia é tensa por sua natureza (Cf. HOLMES, 1999, p. 227). A adoção de uma Constituição por uma comunidade, por meio do exercício legítimo do Poder Constituinte, pressupõe o reconhecimento da regra da maioria como instrumento apto à tomada de decisão pela sociedade. Assim, as constituições que resultam de processos constituintes legítimos, ou seja, que são promulgadas após um processo aberto de discussão e deliberação por representantes, são constituições democráticas. No entanto, ao adotarem a ideia de rigidez, impondo critérios mais rigorosos ao processo de rediscussão e reforma dos seus dispositivos do que aqueles critérios adotados em suas deliberações, vedam à maioria o acesso ao tema. A maioria do povo, que decidiu pela necessidade de um novo parâmetro constitucional, delibera contra a futura maioria, interditando à política ordinária um conjunto de temas. Os que se consideram iluminados o suficiente para a compreensão dos temas debatidos na Constituinte duvidam das gerações vindouras e proíbem a rediscussão (SANTOS, 2005, p. 18).

Vê-se que o povo, embora titular do poder soberano de determinar suas próprias normas de conduta constitucionalizadas, acaba por participar de um projeto inacabado de democracia, do qual, muitas vezes, é excluído por mecanismos tortos disfarçados desse mesmo poder. Garantir a participação popular em espaços deliberativos para a imposição de regras, normas e princípios e, ao final, dotar o Estado de instrumentos hábeis a fazer valer a filosofia hermenêutica dessa real materialização de poder, é uma necessidade latente que clama por uma nova visão do Direito, enquanto ciência jurídica apta a harmonizar uma multivivência e a produzir a paz social: o cosmopolitismo jurídico.

Enraizado em Kant (2004), o ordenamento jurídico cosmopolita abraça a mútua influência entre homens e Estado, em prol de um espírito universal de humanidade. Nesse sentido, em seu Primeiro Artigo Definitivo para a paz perpétua, Kant escreveu que a Constituição fundada, primeiro, segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os princípios da dependência de todos em relação a uma única legislação comum (enquanto súbditos); e, em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cidadãos), é a única que deriva da ideia do contrato originário, em que se deve fundar toda a legislação jurídica de um povo – é a constituição republicana (KANT, 2004) . E essa carta republicana, soberana de uma nação, também o é de outra nação, cuja convivência entre elas deve ser harmoniosa o suficiente para assegurar a hospitalidade e o direito de visita, aproximando cada vez mais o gênero humano de uma constituição cosmopolita.

Ao tratar do cosmopolitismo, Ulrich Beck (2006) define que a sociedade pós-moderna sobreviverá se reconhecer a diversidade, que antes era um problema, sendo hoje uma solução, posto que o multiculturalismo irá agregar diferença e integração. A concepção cosmopolita do direito exsurge num cenário universal e globalizado, no qual os Estados estarão em posições igualitárias de soberania, embora esse conceito agora seja relativizado e mais elástico. Isso porque a deliberação é o símbolo da democracia e o trampolim para a sua legitimidade e, no intuito preservativo desse processo, se mostra imprescindível que cada indivíduo esteja apto a formar e reformar suas opiniões num círculo de discussão com seus concidadãos. Para que isso seja viável, os cidadãos devem se conhecer e confiar um nos outros. A solidez do procedimento para a tomada de decisões acertadas implica num comprometimento mútuo, que é garantido pela lealdade comum enquanto membros da humanidade.

No plano interno, o processo democrático tem que ser, ele mesmo, o motor da integração social. Os cidadãos devem se unir em torno do respeito à constituição e da garantia das liberdades individuais, de modo a permitir a convivência pacífica das diferenças culturas, étnicas e religiosas, umas com as outras. Contudo, em um mundo onde os Estados não são mais a única fonte de regulação política, não basta ser cidadão de um Estado, é preciso também ser cidadão do mundo; ou seja, é necessário que existam canais de participação que permitam aos indivíduos intervirem nos processos decisórios que se realizam nos planos supra ou transnacional. Nesse sentido ele elabora uma série de propostas de reformas dos organismos internacionais, sobretudo da Organização das Nações Unidas (ONU), de modo a alcançar esse fim. Mas para Habermas, o que é fundamental para que essas reformas sejam efetivas é a transformação na consciência dos indivíduos, uma transformação que nos permita falar em termos de uma política interna mundial (HABERMAS, 2001, p.74).

Assim, a grande e efervescente inquietação reside no papel dos Estados, nesse cenário cosmopolitizado, e é novamente em Beck que as primeiras luzes raiam nesse panorama globocosmopolitano, pois é do próprio movimento jurídico cosmopolita que surge a validade ilimitada das normas, desde que desligadas de qualquer tipo de vinculação. Nesse contexto, ao permitir novos conceitos políticos e jurídicos oriundos de um direito comum, universal e universável, estar-se-á proclamando que um atentado contra um homem (e um sujeito não humano), aqui ou acolá, representa uma afronta aos seres em qualquer parte do mundo.

Sendo assim, a primeira visão internacionalista do conceito de soberania, entendida como subordinação do povo aos poderes estatais, merece afrouxamento, para encabeçar a ideia de mútua dependência entre as nações, ao mesmo tempo codependentes e co-subordinadas de um estado a um poder global e universal. Vale dizer, nas relações entre os estados não se admite que um tenha poder superior ao outro, visto que o princípio da não- intervenção nos assuntos internos de outros apresenta uma certa relevância. Contudo, no tocante aos direitos humanos (e aos novos direitos dos sujeitos não humanos) a expressão soberania deve ser conceituada com parcimônia e tolerância.

Os tradicionais elementos caracterizadores dessa antiga soberania (território, povo e governo), a partir dessa visão cosmopolita, debatem-se em uma crise que deriva dos processos integracionistas regionais e mundiais. Inclusive, um dos fatores de notória importância para esse processo está na formação do novo poder econômico, fruto de empresas transnacionais, que tornaram possível a criação do direito da integração dotado da premissa de ingerência de novos regramentos aos Estados Democráticos de Direito.

Sabe-se que a integração econômica é um processo de eliminação de fronteiras e barreiras entre dois ou mais países (mercados). O seu objetivo principal é a criação de mercados maiores, bem como de remoção das discriminações e das restrições de circulação (como acontece no processo de liberalização do comércio). Entretanto, é preciso salientar que o Estado não será extinto desse novo cenário mundial. É preciso repovoar o espaço público e democrático evadido por força do individualismo contemporâneo, que se baseia na singularização das coisas, grupos ou pessoas a pretexto de organização. Em face do esvaziamento do espaço público, sente-se a necessidade de repaginá-lo, torná-lo coletivo novamente para discussão das questões públicas.

Lógico que o aspecto negativo dessa nova noção de soberania sente-se nesse novo palco mundial, em que os interesses dos novos atores sociais e governamentais ganharam espaço no mapa cosmopolita, empoderados do capital econômico e político, e acabaram por ditar regras até então desconhecidas, atualmente classificadas como objetos normativos não identificados (ONNI), chamadas normas técnicas e normas de gestão. Tais normas, emanadas de empresas transnacionais e de instituições governamentais, atendendo apenas à unilateralidade de seus interesses, comprometem a lisura do conceito de soberania estatal, na medida em que consolidaram o poderio desenfreado desses atores empresariais econômicos, pondo em risco a dignidade e o respeito à figura do povo (enquanto o cidadão do panteão cosmopolita).

Benoit Frydman (2013), professor na Escola Pragmática de Bruxelas, junto ao Centro Perelman de Filosofia Legal, analisa que tais normas pertencem ao chamado soft law, que irá se traduzir numa nova e influente fonte de direito. E, em época de um pretenso direito cosmopolita, há que se atentar para esses novos indicadores, posto que sua ingerência junto Estados Nacionais comprometem a estrutura do poder legítimo do povo. A soberania de um Estado Democrático não seria mais fruto de um processo popular, mas sim de interesses globais mercantis, desestabilizando a ideia de união entre os povos pelo conceito de aceitação de diferenças.

How should one think about global law? This is a provocative question because it presupposes an answer to another question, no lesser than the first one: does global law even exist? Nothing is less certain. One may certainly speak about a globalization movement, which is not always all that global; one can deal with global finance and global economy and bring up global issues, such as the struggle against global warming. But may one truly speak of a “global law”, when law remains, at least on the surface and in official addresses, the prerogative of the State or, in the case of international law, of the States? Wouldn’t it be wiser to talk about “the effects of globalization on the law” rather than to invoke a “global law”? (FRYDMAN, 2012, s.p.).

Essa é uma pertinente inquietação: quando mais se clama por defesa e garantia dos direitos humanos (e dos não humanos), não há como ignorar a nova realidade que se descortina logo a frente, posto que para a existência de um ordenamento jurídico cosmopolita, é necessário repensar se as fontes desse direito serão apenas os tradicionais pilares normativos legais, ou se há uma subcamada de um leve direito, agora globalizado, apto a influenciar todo o panorama mundial.

O professor acredita que todos somos forçados a reconsiderar as classificações e as categorias em que os novos objetos surgem todos os dias, semelhante a um ornitorrinco do bestiário normativo, que teimosamente se recusa a ser encapsulado. Para dizer a verdade, estas categorias são tão prejudicadas que poderia ser necessário repensar as normas legais de novo, para não dizer a própria lei, e, provavelmente, para resolver inventar uma nova lógica de normas (FRYDMAN, 2012).

Portanto, as razões pelas quais os Estados resolvem afrouxar suas independências soberanas, subvertidamente, deve-se a nova estrutura global econômica que surgiu, forçando uma integração não em si mesma, mas apenas um meio para atingir objetivos maiores. Assim, alguns agrupamentos de países invocam a estreiteza do seu mercado consumidor nacional como argumento à integração e ao alargamento de suas fronteiras, objetivando superá-las. Entretanto, o ângulo que deve prevalecer é aquele que diz respeito à integração como uma plataforma para uma inserção de maior qualidade das relações entre os países, pois ela oferece instrumentos de ação multilateral, aptos a repensar a figura e o papel dos Estados e dos povos ao redor do mundo.

Imperativo, nesse diapasão, que exista uma forte vontade política das bases democráticas, apta a transformar a integração em uma estratégia de estado para que não sucumba às maiorias parlamentares ou às sucessões governamentais. E é evidente que a existência de uma vontade política popular implica que as vantagens e os inconvenientes da integração sejam repartidos equivalentemente. Em face da recorrente resistência dos governos em honrar a estratégia de integração de Estado, é indispensável que o processo seja adotado de instrumentos com a necessária eficácia jurídica, a começar pela existência de uma Corte de interpretação dos textos acordados. O poder constituído pelos Estados-membros estará além e acima deles. Sem essa mínima institucionalização, o processo de integração ficará ao sabor das crises pontuais que marcam naturalmente esses processos.

As nações deverão se unir e se reorganizar como uma comunidade politicamente constituída de Estados e cidadãos e simultaneamente ser limitadas às funções centrais da garantia da paz e da imposição global dos direitos humanos (HABERMAS, 2012). Portanto, a falta dessa vontade política irá culminar em estratégias governamentais nacionalistas, impedindo o desenvolvimento da integração mundial. Por óbvio, nesse sentido, que a compreensão inadequada da reformulação do conceito de soberania, porá fim a sua revitalização e, mesmo, dos próprios Estados.

Bauman (2007) já metaforizava essa relativização acerca da fluidez como o estágio presente da era moderna. Para ele, o derretimento dos sólidos, o tornar liquido o que antes era concreto (incluindo, portanto, os conceitos rígidos), é um traço permanente da modernidade, uma vez que os líquidos, diferente dos sólidos não se atêm a qualquer forma. Para eles, o que conta é o tempo mais que o espaço lhes toca ocupar.

Assim, o conceito de instituição do Estado no mundo, representando um espaço territorial delimitado, onde é possível que seus cidadãos nacionais exerçam seus direitos e cumpram seus deveres, revela-se atualmente desgastada e deve ser recortada por uma perspectiva futura para que os homens e os não homens vivam em uma ordem de paz e direito em sentido global. É fundamental que os ambientes econômicos, sociais, ambientais e políticos se insiram numa dimensão globalizada, implicando, assim, no afrouxamento dos limites da soberania nacional.

Entretanto, é necessário conhecer várias dimensões dessa globalização, em decorrência da intensificação das relações em escalas mundiais que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais podem ser modelados por eventos que ocorrem a milhas de distância. Esse novo padrão de interdependência desafia o estado nacional a reorganizar suas fronteiras em virtude da conexão global dos fluxos financeiros emergentes dos novos atores. Aquele conjunto de competências atribuído ao Estado soberano exercitável no plano da independência e da igualdade é relativizado, na medida em que a nova sociedade mundial torna porosa a igualdade soberana estatal no campo jurídico.

Somente a transnacionalização compreendida com uma introdução na teoria do direito de uma terceira dimensão jurídica (o cosmopolitismo), com ascensão do poder da democracia dos povos é que será possível abraçar novos princípios rumo a uma ordem jurídica justa. Haverá então o direito nacional, o direito internacional e o direito cosmopolítico, que é fruto do desaguamento de uma justiça social.

Otfried Höffe (2005) justifica a necessidade da existência de uma ordem jurídica e estatal justa para viabilizar a ordem de paz e direito em sentido global. Esse ritmo frenético provoca uma sobrecarga dos estados nacionais, que ainda passam a sofrer, consequentemente, destituição de seus poderes. Cada vez mais fica claro que a ordem jurídica estatal internacional baseada na soberania dos estados nacionais não é suficiente para garantia de uma ordem justa. É preciso fazer um República das Repúblicas Livres, entendida como uma nova ordem mundial justa, para velar pela segurança e o direito de autodeterminação dos Estados Nacionais e nada mais.

E, ao encontrar esse novo espaço na constelação globocosmopolitizada, como encarar os direitos e os deveres dos cidadãos? E mais, como estendê-los, se isso for possível, aos animais não humanos? A chamada personalidade jurídica dos homens é passível de extensão aos não homens? Essas são as indagações que nos remetem a segunda discussão: a revisitação do conceito de personalidade de jurídica para trabalhar as novas dimensões (atributos da dignidade) e a solidariedade cosmopolita ao animal não humano.

  • NOVO VIES DE PERSONALIDADE JURÍDICA, DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE NUMA ORDEM COSMOPOLITA

É consabido que todo ser humano, na sociedade moderna, possui personalidade jurídica. A condição jurídica da personalidade é um direito fundamental que se irradia ao indivíduo quando ele ainda se encontra na forma embrionária. Essa situação jurídica representa o atributo da pessoa humana, dando-lhe a titularidade de direitos e a sujeição ao cumprimento de deveres. Evidentemente, a história da humanidade clarifica que esse conceito de personalidade não tinha um caráter universal. Durante o longo período da escravidão dos negros, nem todos eram considerados como seres humanos. Resulta cristalino que os dogmas da personalidade jurídica, hoje inerente a todo o ser humano, são oriundos dos contextos históricos e jurídicos das sociedades em dados momentos.

Contudo, certo é que não se pode conceber um conceito de meia personalidade jurídica, ou ela é integral, ou ela não existe. A personalidade antes de tudo é um valor, um valor comum a todos os homens. E esse valor é reconhecido pelo Ordenamento Jurídico, na medida em que a personalidade se tornou um direito indisponível e inviolável. É um valor jurídico sentimental que impede a apropriação e o patenteamento. É de extrema utilidade para a humanidade que assim o seja, pois fica à margem da exploração.

É fruto da sua dignidade universal, mantenedora do autorrespeito e do reconhecimento social, de um cidadão pelo outro, como sujeitos de direitos iguais reivindicáveis a qualquer canto do planeta. A dignidade que atribui o status de cidadania alimenta-se da valorização republicana dessa atividade democrática e da respectiva orientação para o bem comum (HABERMAS, 2012).

A então denominada utopia da felicidade coletiva, nada mais é do que a tensão entre essa personalidade jurídica universal, derivada da dignidade humana (no contexto da modernidade, o valor da dignidade é exclusivo do homem), e a chamada personalidade jurídica destacável (entendida essa por dois vieses: 1. pelos materiais humanos apartados da persona – substâncias, células, fluídos, órgãos, que hoje transitam entre a bioética e o biodireito; 2. como também pelos demais sujeitos não reconhecidos plenamente pela sociedade ou pelo direito – são as pessoas das sub-humanidades, como os negros, os índios, os estrangeiros, os deficientes, as mulheres e os animais) – que expõe a coletividade à beira de um abismo colossal entre o individual e o coletivo, como fator de resistência à integração do mundo cosmopolita.

Inclusive, por decomposição dos atributos da dignidade, Daniel Sarmento (2016) estipula que todos os invisíveis e demonizados pelo sistema de privilégios (que o poder hegemônico atribui exclusivamente ao homem – humano, varão, branco, heterossexual e rico) são excluídos da consideração moral (e, por consequência, jurídica). Autonomia de vontade, valor intrínseco contra instrumentalização, mínimo existencial, autorreconhecimento e igualdade não são meros pilares teóricos da justiça, mas condicionantes práticas à implementação de políticas e técnicas (ou técnicas de cosmopolítica) para efetivar a dignidade.

E como viver em uma ordem cosmopolita, universal e justa? Como chegar a uma República Mundial composta por pessoas humanas e não humanas dotadas de dignidade? Como estabelecer um ordenamento político, social e jurídico interligado, unificado, condizente com as novas estruturas de um mercado capitalista que só tende a sugar os mais sagrados direitos assegurados à intrínseca personalidade jurídica? As respostas se apresentam em dois momentos: um, por intermédio do reconhecimento da paz em seus oito estágios hoffenianos; dois, pela dotação de uma personalidade jurídica aos não humanos, a qual se ousa denominar de personalidade jurídica cosmo-animada.

Assim, num primeiro parâmetro, a humanidade compreendeu que nada é mais almejado do que o bem da paz. Esse bem, imaterial e inestimável, encerra uma promessa de vantagens terrenas, embora o homem se empenhe (com todos os outros homens) em representar a paz na sua forma de coexistência natural – isto porque pode reinar a paz perfeita sem guerra, mas não a guerra sem a participação da paz (HÖFFE, 2005). Portanto, a paz, como um valor (e também um direito difuso) comum a toda a humanidade, ingressa no panteão dos sagrados direitos do homem, cujo tutelamento moral e jurídico revela-se: a) pelo instituto da personalidade jurídica, b) pela categoria jurídica-valorativa da dignidade e c) pelo princípio da solidariedade universal.

Em seus oito níveis (paz corpórea, paz da alma irracional, paz da alma racional, paz do corpo e da alma, paz do ser humano mortal com Deus, paz da concórdia organizada, paz do estado celestial, e paz para todas as coisas), percebe-se a correlação da paz com inúmeros direitos tutelados pelos Estados (saúde, integridade física e mental, liberdade corporal, liberdade religiosa, proteção da família, liberdade de ir e vir – inclusive para aquilo que ainda se classificam como coisas/propriedade/patrimônio: os animais não humanos). E é aliando a visão de Höffe, Habermas e Beck que encontrar-se-á o caminho para a indagação: é possível atribuir direitos aos animais não humanos, cambiando sua posição nos ordenamentos jurídicos legados pela modernidade? É possível atribuir-lhes personalidade jurídica?

Inexiste motivo – que não o econômico utilitarista reducionista – a reconhecer a condição de pessoa física não humana ao animal. Sendo ele um ser vivo consciente e senciente, é merecedor de dignidade. No entanto, é sabido que, ao longo do tempo, nem a categoria da própria humanidade fecundou o respeito mútuo entre seus membros. Sempre que for vantajoso, lança-se mão dos direitos humanos, e quando houver perigo de danos, prefere-se deles se abster. Uma ordem global que conduza a um reconhecimento imparcial dos direitos humanos em escala mundial não é desejável para os interesses hegemônicos mercantilistas e, portanto, inatingível pela via paz (HÖFFE, 2005).

No entanto, a dignidade que atribui o status de cidadania alimenta-se da valorização republicana dessa atividade democrática e da respectiva orientação para o bem comum (HABERMAS, 2012); o cosmopolitismo combina a valoração positiva da diferença com a intenção de conceber novas formas democráticas de organização política além dos estados nacionais, por intermédio do respeito, da legitimidade democrática e da efetividade (BECK, 2006) e a paz, somente atingirá sua plenitude no momento em que essa democracia for exercida em prol dos direitos das demais pessoas, que não só a humana. Novos coletivos existências devem ser reconhecidos e personalizados, sob pena de subversão de uma comunidade mundial de destino comum.

Vê-se, assim, que a paz é um bem comum à humanidade, mas não exclusiva dos homens (leia-se que a humanidade também pode ser composta de animais não humanos). É um veículo legitimador das necessidades e dos direitos da dignidade, que conduzem a aceitação das diferenças entre os povos, raças e espécies, como mecanismo apto ao transbordamento das fronteiras entre os Estados, no intuito da defesa de seus mais intocáveis atributos. E é François Ost (1997) quem arremata esse pensamento, sendo possível extrair de suas palavras que, ao negar a extensão desses direitos fundamentais à vida, à dignidade, à saúde e à liberdade dos não humanos, estaremos igualmente homens e não homens numa mesma problemática ética e jurídica: os seres vivos são passíveis de experimentação e/ou apropriação? O homem atingirá a paz (e consequentemente a aceitação de não tratar o outro com crueldade pela sua diferença), se subtrair personalidade jurídica aos animais não humanos?

Será moral infligir sofrimentos inúteis ao animal, será compatível com a dignidade humana o modificar da sua estrutura genética (sobre estes dois pontos, o novo artigo 2º. da diretiva lembra certos limites: a referência a ordem pública e aos bons costumes é reintroduzida, a patenteação do corpo humano e dos seus elementos enquanto tais é interdita, bem como a dos processos de modificação da identidade genética do corpo humano com um objetivo não terapêutico e contrário à dignidade da pessoa humana)? Será moral exercer uma propriedade privada sobre uma informação genética que advém do patrimônio comum da humanidade? (OST, 1995, p. 96).

É imperativo, portanto, que seja atribuída uma personalidade jurídica ao animal não humano, posto que ele é dotado de senciência e consciência (com atividades neuroquímicas, neurofisicas e neurossensoriais) e representa, em culturas orientais e em culturas originárias, um topoi para a emancipação das diferenças no mundo cosmopolitizado. Negar o fato de que um ser não humano – notadamente os animais – são capazes de experimentar dor, sofrimento, alegrias, tristezas e toda a sorte de emoções dignas é o mesmo que institucionalizar o estado anticivilizado da barbárie (o que os próprios humanos já foram capazes de praticar contra os seus semelhantes em tempos passados). Ademais, importante referir marcos normativos já existentes e assimilados no mundo ocidental a respeito da proteção dos não humanos em legislações civis e criminais internas (ou precedentes judiciais) nos Estados soberanos (a exemplo da Alemanha, Argentina, Austrália, Brasil, Colômbia, Equador, França, Portugal, Suíça e Nova Zelândia), atribuindo-lhes o caráter de seres sencientes.

É preciso, num universo cosmopolita, rumando à comunidade mundial de valoração da paz e da dignidade, verificar se o binômio vida-morte na concepção de uma dignidade do lado ocidental não é representativo do binômio humano-não humano. Aceitar essa similitude de paradigma no cenário global representa a eternidade dos ciclos dos crimes intoleráveis (tais como a tortura e o tratamento cruel) não só contra seres de outras espécies, mas contra os próprios humanos. É imperativo que se fomente a potência da hibridação. Boaventura de Sousa Santos (2016) fornece nesse contexto, uma importante ferramenta para essa situação.

Ao tratar da hermenêutica diatópica, o citado professor frisa que a humanidade necessita estabelecer uma globalização contra hegemônica entre os povos, por intermédio de um cosmopolitismo de relação (cosmopolitismo de insurgência, emancipatório). Apenas com um diálogo multicultural os homens passarão a compreender que todas as culturas são relativas e possuem seus símbolos máximos (topoi) e que as diferentes percepções do que seja a dignidade para cada uma dessas culturas é o ponto de partida para a aceitação das diversas igualdades e diferenças (complexidade intercultural) para as outras. Assim, partindo da premissa de que muitas culturas são senciocêntricas e biocêntricas (estendendo aos animais não humanos muitos direitos que outras culturas garantem apenas aos homens), é deveras limitada a visão de que somente a pessoa humana possa ser titular de direitos.

A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento coletiva, interativa, intersubjetiva e reticular. A designação de uma nova modalidade de personalidade jurídica aos animais não humanos, conduzida a partir da perspectiva de outras culturas é um caminho ao diálogo interativo e universal acerca de direitos coletivos, de direitos da natureza, de animais não humanos, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com as entidades coletivas, sejam elas a comunidade mundial ou o próprio cosmos.

Assim, quebrando a percepção dual de que apenas o homem pode ser sujeito de direitos, dotado de personalidade jurídica num mundo cosmopolitizado, surge a revaloração da dignidade e a revisitação do princípio da solidariedade, em um plano mundial, como eventuais marcos normativos para guiar a emancipação do não humano nesse cenário, até então, cartesiano – no qual apenas uma das espécies vivas no planeta seria digna de ser tratada com respeito e consideração.

Sem distinguir, nesse novo cenário, o princípio moral básico de que a igualdade no mundo do direito deve partir de uma relação sólida e solidária para com os animais não humanos, é possível entender que a não extensão da dignidade a essas pessoas simboliza uma atrocidade merecedora de reprimenda. Calcada no velho preconceito cultural de que o homem é o senhor do universo, é fácil relegar minorias raciais e pessoas não humanas a uma categoria jurídica e moral desprendida de dignidade. Essa tênue linha divisória entre o sofrimento de um humano e de um não humano passa apenas pelo limite da senciência, uma vez que é inegável o fato de que todos os seres vivos experimentam algum tipo de dor, prazer ou felicidade.

Como em tempos passados o homem foi capaz de impingir dor ao seu próprio semelhante (escravos, dominação colonial), na atualidade, embora legalmente proibido de o fazer, o sujeito humano não abortou essa prática e, pior, não tomou a necessária consciência de que uma dor sentida por um não humano é tão má quanto a dor sentida por um humano. Certo é que, nesse contexto, com a nova revisitação de soberania e de democracia, apenas com a superação desses déficits conceituais clássicos, diminuindo a distância entre as instituições comunitárias e os cidadãos do mundo, é que surgirá uma sociedade mundial multicultural integrada de forma sistêmica, com primazia de direitos subjetivos não só os homens, mas àquelas pessoas e entes que pertencem a outras categorias.

Jürgem Habermas estabelece que para uma solidariedade recíproca entre estados soberanos é preciso civilizar por meio da “juridificação”, unindo várias instituições por meio de uma chance de democratização criando uma comunidade transnacional em nível global. A expansão supranacional da solidariedade civil depende de processos de aprendizagem que, como a crise atual permite esperar, podem ser estimuladas pela percepção das necessidades econômicas e políticas (Habermas, 2012, p. 27). Verifica-se, assim, que essa nova forma de solidariedade faz diálogo com a ideia do egoísmo cosmopolita de Beck (pois aceitar a diferença do outro significa que há medo da não aceitação da divergência) e com a ordem justa de Höffe (cujo entendimento parte de uma reforma institucional, privilegiando as participações democráticas se descuidar da pressão nos setores econômico e político). Essa releitura dos marcos jurídico-institucionais, calcados na expansão do poder constituinte dos cidadãos não pode perder de vista a crise do antropocentrismo.

Portanto, a teoria do discurso de um patamar mínimo civilizatório estendido para os humanos, ao passar pelos pilares fundantes da solidariedade e da dignidade devem se estender aos não humanos. Essa transição da reivindicação para fruição de direitos que passa pela cooperação e pela solidariedade deve assumir uma posição normativa capaz de legitimar a dignidade para todos os seres como propriedade comum original sobre toda a terra. Os imperativos de solidariedade assumem uma posição normativa intermediaria entre deveres jurídicos e deveres virtuosos de modo que a comunidade, por um lado, não precise induzi-los institucionalmente, embora, por outro lado, uma vez instalados esses deveres institucionalmente, possa obrigar os cidadãos a fazê-lo (HÖFFE, 2005).

Desse modo, a cooperação voluntária dos Estados em aceitar direitos morais e jurídicos universalmente válidos passa por um refinamento no conceito de dignidade, assim entendida como modernização normativa. Ser digno é possuir a autossuficiência elementar primitiva, puramente natural, não fazendo sentido distanciar os seres não humanos dos seres humanos. Apenas com a satisfação de suas necessidades interiores, capazes de proporcionar bem estar, é que surge a paz interna, que se exteriorizará ao nível dos Estados como consequência da boa ordem reinante nos seres. Exsurge claro, portanto, que a remodelação dos conceitos de dignidade e solidariedade dentro de um ordenamento cosmopolita passam pela satisfação dos direitos de não receber tratamento cruel e torturante tanto de humanos como de não humanos, elevando ao patamar jurídico a paz e a felicidade como patrimônio mundial comum de valores, que deverão ser internalizados pelos estados membros por intermédio de tratados internacionais para além das fronteiras das nações, dentro da institucionalização de uma nova república mundial.

A ética jurídico-estatal não poderá renunciar a uma paz universal no sentido da moral jurídica, ou seja, a paz global que abrange todos os indivíduos humanos, todos os estados e também os não humanos. Nessa seara, os estados democráticos devem perceber e reconhecer na alteridade, no sentido de que somos todos filhos do mesmo cosmos, a renúncia ao antropocentrismo para colocar humanos e não humanos no mesmo plano. Partindo da paz como conceito chave, sendo elevada à categoria de bem supremo, ela atingirá a) o cosmopolitismo habermasiano juridificado na integração das forças sociais naturalizadas, b) alcançará a ordem cosmopolita hoffeniana jurídica e justa, para qual a paz é um bem de alto valor existencial, c) e sedimentará o cosmopolitismo reflexivo beckiniano de reconhecimento mútuo de divergências entre as pessoas, como mecanismo cosmopolítico responsável pela instauração de uma nova república – mediante a alavanca do cosmopolitismo hermenêutico diatópico e emancipatório de Boaventura.

Há que se dar nova visão ao contrato social leviatano de Hobbes, pois para buscar a paz é necessário desprender o homem do pensamento racionalista e cartesiano de apoderar-se do que é vivo. Ignorar sofrimento dos animais não humanos, retirando-lhes dignidade, implica em atomizar o ser vivo, quando nenhum ser vivente pode ser alvo de exploração. Na trilha do entendimento de François Ost (1995), sob pena de o mundo inteiro ser plastificado, é necessário que se faça uma escolha de valores conscientes e democráticos, pois infligir sofrimentos inúteis ao animal e não o reconhecer como pessoa, dotada de personalidade jurídica, é incompatível com a dignidade e com os atos de resistência ao reducionismo biológico e as potenciais ameaças do biopoder.

CONCLUSÃO

É partindo da análise de que a evolução da humanidade, por intermédio de um progresso em busca da paz comum, como patrimônio mundial, poderá atingir a alma dos homens para a mudança de um paradigma antropocêntrico ocidentalizado como imposição de cultura hegemônica aos demais seres do planeta, que as diversas culturas ao redor do globo poderão iniciar um diálogo multifacetado. A partir da constatação de que os Estados-Nação estão sujeitos a uma abertura e um espaçamento de seu poderio político, econômico e, até mesmo, jurídico, o conceito de soberania deve ser elasticizado, na busca o aperfeiçoamento de um manancial intercultural de aceitação das diferenças.

A ideia de que qualquer ser vivo reinante (notadamente os seres sencientes) no planeta é digno de proteção pelo universo cosmopolitizado, encerra a percepção, antes velada, da premente imperatividade de múltiplas normas que costuram uma nova sociedade mundial. Estender o reconhecimento de direitos tidos inadmissíveis a outras espécies (que não a humana) é fundamental para o alargamento da mente, da alma e das fronteiras, que culminará com a elucidação do sentimento de pacificação social.

Travando diálogos de diversas vertentes, perpassando por diversas matrizes, é viável conceber a inteligência normativa da criação de uma nova categoria jurídica aos animais não humanos, a de seres sensitivos e conscientes, dotando-lhes de uma personalidade jurídica cosmo-animada, livrando-os das atrocidades e barbáries das quais sempre foram vítimas. Identificando nos animais não humanos a extensão da dignidade que as culturas ocidentais (eurocêntricas, falocêntricas e antropocêntricas) emprestam somente aos humanos, dar-se-á um grande passo rumo a uma comunidade mundial de valores, calcados na solidariedade cosmopolita advinda da legitimidade multicultural de diversos topoi.

O bem estar dos povos americano, africano, europeu, asiático e oceânico depende da referência sólida no sentido de que todo ser vivo dotado de um sistema nervoso é capaz de experimentar dor, sofrimento, prazer e felicidade. Independente da raça, da etnia, da condição humana ou não humana, a paz da vida se prolongará na medida em que o homem for capaz de entender que um mal que pratica a um mal é um mal que pratica contra toda a humanidade. Desse modo, no mundo cosmopolitano da sociedade pós-moderna, é imperativo recortar o conceito de soberania solitária dos Estados, para permitir o pespontamento de uma abertura universal de estendimento de direitos ao diferente, pelo viés da valoração universal da dignidade e do princípio jurídico da solidariedade.

Assim, conclui-se que o movimento cosmopolita abre a porta para a inserção do animal não humano na esfera de proteção jurídica dos Estados, na medida em que se reconheça sua titularidade de direitos por todo o globo. A aceitação explícita do caráter plurinacional dos Contratos Sociais irá despertar a consciência nos homens de que a abertura para a mudança real de injustiça social e de opressão de minorias, para o desejo de fazer parte de uma sociedade solidária, começa com o deslocamento do marco antropocêntrico e termina com a absorção e o reconhecimento das diversas cosmovisões espalhadas ao longo do mundo.

Somente com o rompimento do paradigma de dominação do homem sobre o animal, para construir uma nova relação baseada na solidariedade e na cooperação com a natureza, com o abandonando do pensamento de exploração e de dominação fundado no modelo do antropocentrismo cartesiano, é que se estará diante da plenitude da concepção do bem viver e da paz. Assim, para ultrapassar a crise do insustentável limite antropocêntrico, urge descolonizar o pensamento estruturado pelas ideias do progresso econômico a qualquer custo, a fim de, então, incorporar a filosofia da paz e da felicidade comum aos ordenamentos normativos, pela união das duas faces de um mesmo referencial, faces que espelham direitos iguais, ainda que em sentidos opostos (côncavo e convexo): os direitos humanos e os direitos animais.

Isto porque, com a percepção do homem de que é tempo de uma emancipação ecológica, o estendimento da condição de pessoa e de sujeito de direito aos animais não humanos, numa sociedade cosmomundial, abrirá o caminho para o estabelecimento da convivência harmônica do homem com ele mesmo e com os demais seres vivos, numa comunidade mundial de valores universalmente reconhecida. Portanto, um dos passos dados na direção de salvar a humanidade da aniquilação total é a reflexão acerca da relação tida entre a natureza e o homem, precipuamente com o condão de reorganizar seus paradigmas morais, viabilizando a segurança das futuras gerações. Para tanto, há que se manter intocável um patrimônio valorativo universal comum, incumbindo ao Direito a obrigação de conservá-lo.

Assim, a instrumentalização normativa do conceito de personalidade jurídica os animais é fruto dessas atuais percepções morais e jurídicas necessárias à subsistência da dignidade, da felicidade e do próprio homem. Desse mesmo homem que se distanciou do animal e que, nesse momento, é dado o tempo da reaproximação pela igualdade, tendo em vista que todas as espécies vivas dotadas de senciência devem conviver pacificamente, pois pertencem ao mesmo cosmos. Nesse cenário, sendo o Direito uma ciência em processo de contínua reconstrução, é possível descoisificar o animal para atribuir-lhe o status jurídico de pessoa não humana, abandonando, assim, o paradigma do modelo contratualista moderno, influenciado por Hobbes, Rousseau, Kant, e Descartes.

O homem, ser racional, era, por tal mirada, uma entidade superior e a única detentora de dignidade – dignidade da pessoa humana –, porém o próprio humano não sobrevive apartado da natureza e em um meio ambiente que não seja equilibrado e sustentável. Nesse contexto, deve ser considerada a dignidade da vida (e não apenas da pessoa), haja vista que o reconhecimento da proteção do meio ambiente, enquanto valor fundamental, indica que estão em pauta não só a salvaguarda da vida do homem, mas também a dos animais, bem como a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta.

Esse novo olhar guiou a humanidade para uma mudança cultural e uma alteração de paradigmas da consciência de que o antropocentrismo deve ceder espaço ao senciocentrismo, uma vez que a natureza precede ao próprio homem. Foram se evidenciando os direitos dos animais, contrariando o modelo baseado no imperativo kantiano, e remodelando o enfoque da dignidade, rechaçando as condutas especistas, que menosprezavam outras vidas (e excluíam os animais não humanos dos ideais de justiça). Assim, ainda que algumas culturas sejam resistentes ao reconhecimento dos direitos fundamentais aos animais não humanos, há o diálogo entrecruzado dos topoi, de forma a reinterpretar as bases normativas da personalidade jurídica e garantir, portanto, dignidade ao sujeito animal. No tempo da pós-modernidade vem soprando o vento da mudança de paradigmas, para sedimentar no âmago da sociedade o ideal da paz pelo reconhecimento de direitos invioláveis aos seres vivos sencientes.

REFERÊNCIAS

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About: Karen Emilia Antoniazzi Wolf

Karen Emilia Antoniazzi WolfAdvogada, professora e pesquisadora científica.
Doutoranda em Direito Público pela UNISINOS, mestra em Direitos Emergentes pela UFSM e presidente da Comissão Especial de Direitos Animais da OAB/Santa Maria (RS).

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