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Humano e não humano no jogo da democracia deliberativa

A DIGNIDADE DA VIDA NO DISCURSO DA SOCIEDADE CIVIL PARTICIPATIVA

KAREN EMILIA ANTONIAZZI WOLF

RESUMO: O artigo trata sobre a conexão refletida entre o modelo democrático deliberativo e o cosmopolitismo jurídico, para extender direitos aos animais não humanos, dentro de uma nova ordem mundial. A aceitação de uma ordem comum será concebida em uma comunidade mundial de valores quando perpassar pela sua mola matriz: o bem comum e a paz, enquanto instrumentos legítimos para a satisfação de necessidades elementares e naturais de todos os seres, por políticas democráticas participativas. Com o fito de esclarecer a problemática: “é possível estender a condição de sujeitos de direitos aos animais não humanos numa ordem mundial democrática na era a informação?”, esse artigo está dividido em duas partes, a primeira versa sobre a democracia: os direitos humanos e dos não humanos pelo prisma da deliberação; e a segunda versa sobre diálogos jurídico-culturais entre o modelo democrático deliberativo e o movimento cosmopolita: mecanismos de inclusão do sujeito não humano. O método de abordagem é o dedutivo-dialético, com procedimento histórico-bibliográfico, mediante fichamentos e resenhas. Por fim, foi possível concluir que as sociedades democráticas deliberativas são o ponto de partida, dentro da ordem universal, para estender a titularidade de direitos aos não humanos, a partir da concepção do bem comum.

Palavras-Chave:
Animal não humano. Cosmopolitismo. Deliberação. Democracia. Dignidade.

  • CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os tempos da contemporaneidade não possuem limites e nem respeitam espaços, forçando o Estado a conviver com diferentes atores em tempos diferenciados. Há uma fadiga dos tradicionais conceitos antropocêntricos que guiam os povos, na medida em que para trabalhar a paz mundial, rumo a uma comunidade universal de valores, é imperativo rever o apego à tradição antropológica ocidental, dando uma nova roupagem ao comunitarismo em um contexto moderno. A cultura vertical, linearmente hierarquizada, passa a ser organizada em rede, horizontalizando-se com a moral e com o jurídico, já que o discurso de uma democracia participativa e de uma ordem cosmopolita começa a ganhar força, notadamente na ideia de revisitação de conceitos e instituições que são necessários à superação do dualismo global/local, nacional/internacional. E para viabilizar essa nova ordem, não só reforçando e solidificando as conquistas dos direitos humanos na escala mundial, como também para estender a dignidade aos animais não humanos na mesma intensidade, é que as sociedades democráticas devem ganhar força. A democracia é a forma de governo menos injusta e na sua versão deliberativa é possível trabalhar a inclusão do outro e combater os sistemas de exclusão presentes nos palcos hegemônicos decorrentes da representatividade. Nesse viés, a sociedade civil organizada lança mão de seu direito de liberdade de expressão e insere-se no contexto político, social e jurídico, reformulando o tradicional conceito de que somente os homens podem ser titulares de direitos. Homens e não homens, pelo prisma da igualdade e da solidariedade cosmomundial, possuem direitos fundamentais, os quais, na moderna sociedade plural, devem ser plenamente efetivados. O reconhecimento do diferente implica na compreensão de que outros seres (não humanos) são apenas o reflexo invertido da pessoa humana, na medida em que no jogo do côncavo (humanos) e do convexo (não humanos), as homogeneidades são escondidas apenas num primeiro plano. A ideia de que o homem é o centro do mundo (cavidade mais profunda no centro do que na superfície – antropocentrismo: tal e qual o espelho côncavo) é reformulada a partir da aceitação de que os seres não humanos (direitos arredondados na superfície pela nova ordem que deve ser o centro – biocentrismo: tal e qual a imagem convexa) são também pessoas dotadas de direitos. Portanto, a humanidade não acomoda mais a tradicional separação entre o local e o global, nem a dualidade entre o binômio humano/não humano como vetor excludente de atribuição de direitos tradicionais a alguns seres vivos. Nesse cenário, estendendo a ideia de democracia participativa, com a deliberação do coletivo sobre conflitos internos e externos, surge a recognição de que todos os seres vivos devem estar sob a concepção da dignidade da vida, estado esse que deve se alastrar por todos os espaços do mundo, na medida em que o reconhecimento e a aceitação do diferente é uma característica fundamental do projeto democrático-cosmopolita. O cosmopolitismo combina a avaliação positiva das diferenças para conceber novas formas democráticas de organização política para além dos Estados nacionais, por intermédio de três princípios: a tolerância, a legitimidade democrática e a eficácia dos direitos fundamentais. Para conduzir a pesquisa adota-se como método de abordagem o dedutivo-dialético, com método de procedimento histórico-bibliográfico, mediante fichamentos e resenhas, no intuito de esclarecer a problemática desse artigo: é possível estender a condição de sujeitos de direitos aos animais não humanos numa ordem mundial democrática?. Estruturou-se a pesquisa em duas partes assim distribuídas: a primeira parte intitulada “democracia: os direitos humanos e dos não humanos pelo prisma da deliberação”; e a segunda “diálogos jurídicos-culturais entre o modelo democrático deliberativo e o movimento cosmopolita: mecanismos d inclusão do sujeito não humano”. O estudo teve como marco teórico Jürgen Habermas, Ulrich Beck, Otfried Höffe e Boaventura de Sousa Santos.

  • 1 DEMOCRACIA: OS DIREITOS HUMANOS E DOS NÃO HUMANOS PELO PRISMA DA DELIBERAÇÃO

Na sociedade contemporânea, a pauta sobre direitos humanos ainda é assunto efervescente, pois muitos dos direitos assegurados nas cartas internacionais e nas constituições soberanas dos Estados ainda tem aplicabilidade ineficiente, visto que não são incorporados socialmente pelo poder Executivo. Ainda, nem sempre todos os sujeitos de direitos são efetivamente titulares de direitos humanos, mas tão somente alvo de discurso deles. Desde que a declaração universal dos direitos do homem foi firmada em 1948, positivou-se a máxima de que esses direitos não podem ser revogados por nenhum tratado internacional, lei, ou emenda constitucional, isto é, são dotados de caráter irreversível e indivisível, uma vez que são fundamentais, como assegura Norberto Bobbio (BOBBIO, 1997, p. 18).

Nessa seara, tais direitos fundamentais e essenciais à dignidade humana estão atrelados às regras do Estado Democrático de Direito, pois uma democracia deve zelar pelo respeito das garantias sociais, bem como pelas liberdades de caráter individual, sendo que a dignidade, enquanto princípio norteador das políticas sobre direitos humanos, tem uma força expansiva, atrelada às exigências de justiça e de solidariedade. E, nesse contexto, surge o cidadão, e, assim, a cidadania é a maior expressão de reivindicação e consolidação de direitos, a qual deve ser plenamente exercida na sua forma mais plural, por intermédio de manifestação de vontade livre, que dará margem ao fato de que somente a vontade dos sujeitos garantirá a validade das normas – é o subjetivismo ético garantindo a razão (HABERMAS, 1997, p. 90). Assim, a vontade e a opinião dos cidadãos, num discurso apto a legitimar a razão, efetivam direitos estampados nem um saber gramatical (ciência jurídica), o qual, se não for calcado no republicanismo plural, prestigiará apenas a vontade da maioria, excluindo do processo todos os cidadãos pertencentes às margens do projeto democrático.

Ademais, na balança entre dinheiro e poder, de um lado, e solidariedade entre povos e raças, de outro, sempre haverá o peso da política liberal como fator de exclusão dos sujeitos, entravando o pleno alcance da paz e da felicidade. Nesse contexto é que surge a crise do antropocentrismo, pois a necessidade humana de satisfação pessoal leva ao consumo desenfreado e a uma ilusão de felicidade, na medida em que essa política implica numa cadeia de efemeridade da paz social (mais consumo, mais produção, menos preocupação com o outro – inclusive com os não humanos). Assim, apenas com o estabelecimento de um pluralismo cultural e social sem fronteiras é que se pode cogitar na inclusão do outro e do diferente.

Isso somente é possível pelo viés da solidariedade, pois ela é a “vertente de escape para o impasse atual entre a garantia da dignidade humana e os interesses materialistas do mundo moderno” (NUCCI, 2016, p. 68). Assim, o estabelecimento de cidadania e do papel do cidadão é uma formalidade universal, pois em todos os países há um determinado regime normativo, órgãos competentes e formas de governos e parlamentos no quais buscam organizar o Estado de Direito, bem como estabelecer os limites para que a ordem democrática seja mantida. Por isso, a vontade e a opinião são vetores de participação que legitimam os processos democráticos e, para tanto, o povo necessita de uma argumentação geral, baseada em processos informacionais fidedignos, capazes de estabelecer marcos de produção e solidificação de direitos ao redor do mundo.

Portanto, ao mencionar universalidade de direitos humanos, a participação cidadã deliberativa é medida que espelha uma sociedade unida e única, ou seja, estabelece uma ligação entre todos os países, o que pode ser denominado como Redes de Comunicações, no qual se encontram interligadas para aplicar melhorias e decisões justas e com efeito para todos (COMPARATO, 2003, p. 423). A teoria deliberativa apresenta um modelo de democracia participativa focada na participação pública para a tomada de decisões em fases de deliberação, sendo assim apta a gerar decisões mais justas, uma vez que contam com a participação social. Esse modelo de democracia visa o cidadão como ator político, eis que em cada seguimento social a pessoa será parte integrante de decisão.

Ressalta-se que nesta modalidade de democracia a legitimidade das decisões políticas é resultante de diversos processos de discussões, no quais são norteados e derivados de alguns princípios que se estendem desde a inclusão social, até a igualdade e participação da sociedade. De acordo com Habermas (1990, p. 48), a democracia é representada pela ideia de inspiração de pensamento como uma nova modalidade de discussão e debates, bem como o uso da linguagem na participação ativa durante a fase de deliberação. Deste modo, sendo a democracia um mecanismo político que é apto a modificar preferências (vontades dos sujeitos) por intermédio de discussões públicas, para ser viável estender direitos aos sujeitos não humanos (que não são dotados de racionalidade), é necessário reinterpretar o Estado Democrático de Direito pela Teoria do Discurso (HABERMAS, 2012, p. 129), pois o nível discursivo das comunicações e deliberações gera um poder capaz de atribuir validade e eficácia à razão predominante na cabeça de cada cultura, formando a política nacional (ou até mesmo mundial – no caso do cosmopolitismo democrático) da vontade, da opinião e da deliberação.

Para Lüchmann (2002, p. 146), esta modalidade de democracia concentra-se em uma inclusão de cidadãos dotados de mesmos direitos, ou seja, não carrega um critério de um ordenamento social, político ou econômico, sendo assim, tais fatores não podem ser preceitos para retirar um integrante do processo de deliberação pública, pois não há distinção de membros. A mola matriz é o Princípio do Bem Comum, usado, nas palavras de Habermas (1990, p. 87), para o alicerce de um debate de cunho deliberativo e que tem por objetivo visar à promoção de um estado benéfico para todos, ou seja, trata-se da aplicação de uma equidade tal como uma justiça social. Há também o Princípio da Participação, trazendo a ideia da inclusão, garantindo a participação e a integração de todos em um debate e discussão para que seja exercido e desempenhado o direito de argumentação e o exercício de voto.

De acordo com Lüchmann (2002, p. 115), a democracia deliberativa trata da inclusão de processos de justificação, isto é, a promoção de debates públicos no qual exercita o livre exercício de palavra entre os cidadãos, na medida em que eles possuem as mesmas condições na participação do poder público. Os cidadãos irão deliberar de forma argumentativa e racional com o objetivo de uma decisão coletiva. A deliberação, portanto, abre espaço para um diálogo mútuo e contínuo, para uma tomada de decisão de cunho provisório, pois ela sempre pode ser revogada, alterada ou até mesmo reintegrada, visto que, mantem-se aberta para questionamentos futuros. A participação popular na arena da esfera pública traz uma análise de cunho sociológico que apresenta o conceito de uma mudança de estrutura, ou seja, esta busca demonstrar uma teoria democrática pelo princípio do bem comum, com uma abrangência maior e calcada em uma unificação social (COMPARATO, 2003 p. 91).

A composição de um espaço social torna-se imprescindível, pois a mediação propõe diálogos no qual propicia discussões e exposição de pontos de vista diferenciados. Neste sentido ocorre a exposição de um espaço administrativo, bem como a comunicação do mundo com os setores privados, isto é, um espaço de deliberação de cunho público, ao qual permite uma abrangência de relação. E assim a inclusão do outro vai surgindo, calcado nos topos comuns de cada cultura diferenciada, eclodindo pela ecologia dos saberes o diálogo dos sistemas funcionais, formando a linguagem de um direito reflexivo, que deve culminar uma gramática comum. E é no diálogo portanto estabelecido entre Habermas (2012) e Boaventura (2016) que a democracia deliberativa encontra amparo nos múltiplos argumentos que podem culminar na cosmovisão mundial de proteção não só aos homens, mas aos não homens, como reflexo invertido da humanidade.

  • 2 DIALOGOS JURIDICOS-CULTURAIS ENTRE O MODELO DEMOCRÁTICO DELIBERATIVO E O MOVIMENTO COSMOPOLITA: MECANISMOS DE INCLUSÃO DO SUJEITO NÃO HUMANO

No intento de se consolidar uma comunidade universal de valores, rompendo de certa forma o pensamento ocidental dominante, necessário se faz o desenvolvimento do bem comum e da paz mundial mediante ruptura com os conceitos jurídicos tradicionalmente antropocêntricos. Nesse sentido, Ulrich Beck (2006, p. 231), ao tratar da indispensabilidade da paz interna, dita que é fundamental aceitar a diversidade como forma de integração dos povos, ao tratar de temas sobre universalismo, nacionalismo e cosmopolitismo, chegando a convicção de que somente aceitando o outro com suas diferenças é que será possível alcançar a uma nova máquina de felicidade. Percebe-se assim que as diferenças entre os povos, que antigamente deram margem a uma imposição de dominação colonial, baseada numa hierarquia totalitária, hoje são sinônimos de tolerância e integração, posto que somente o reconhecimento de igualdades desiguais abrirá o caminho para uma paz e para o bem viver coletivo mundiais.

É imperativo que se converta o princípio denominado por Beck o esto o eso no que ele chama de princípio no sólo sino también. Ao fazer esse reconhecimento dar-se-á novas vestes à solidariedade, tanto moral, quanto juridicamente, forçando as estruturas estatais nacionais a abraçarem uma modernização reflexiva calcada num reconhecimento mútuo. Menciona Beck (2006, p. 154) que a evolução das sociedades modernas se caracteriza por uma descontinuidade fundamental, tanto política quanto cientifica-econômica, sendo necessário que surjam novas instituições calcadas no cosmopolitismo reflexivo, notadamente porque se vive em tempos de globalização. Esse novo cenário cosmopolita com proliferação de vários atores causa impactos nas diversas formas de interação, de comunicação e de cooperação, fazendo com que surjam novos sistemas de vigilância e de controle, os quais refogem ao conceito de estado democrático de direito. A sociedade civil, no exercício de sua liberdade, começa a atuar em diversas áreas, dando um novo panorama a quem são os sujeitos de direitos. O primado da igualdade, que uniformiza e torna as diferenças invisíveis passa a sustentar uma nova bandeira, a de que a essência comum a todos os homens (e aos não homens) decorrem de direitos fundamentais.

É imperativo abrir espaço para uma sociedade plural, onde o estabelecimento regras reconhecem sujeitos menores, hoje não aptos a desfrutar da plenitude de seus direitos. A âncora do Estado-Gerente, que mantém a estrutura unificada, deve ser reformada pelo viés da alta modernidade, forçando o reconhecimento do diferente e calcando no homem o dever de abandono à coisificação, de humanos e não humanos. E a possibilidade de reorganização, readaptação e reabsorção de novos conceitos jurídico-culturais, para humanizar a mundialização, notadamente no tocante a quebra do paradigma antropocêntrico em relação à dotação de direitos ao não humano, está ancorada, portanto, modelo da democracia deliberativa, com a introdução códigos próprios aptos a implementar a circulação do poder pelo Estado de Direito (HABERMAS, 2012, p. 173).

É imperativo garantir a participação popular em espaços deliberativos para a imposição de regras, normas e princípios e, ao final, dotar o Estado de instrumentos hábeis a fazer valer a filosofia hermenêutica dessa real materialização de poder, é uma necessidade latente que clama por uma nova visão do Direito, enquanto ciência jurídica apta a harmonizar uma multivivência e a produzir a paz social: o cosmopolitismo jurídico. Enraizado em Kant (2004, p. 94), o ordenamento jurídico cosmopolita abraça a mútua influência entre homens e Estado, em prol de um espírito universal de humanidade.

Nesse sentido, em seu Primeiro Artigo Definitivo para a paz perpétua, Kant escreveu que a Constituição foi fundada segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens). E essa carta republicana, soberana de uma nação, também o é de outra nação, cuja convivência entre elas deve ser harmoniosa o suficiente para assegurar a hospitalidade e o direito de visita, aproximando cada vez mais o gênero humano de uma constituição cosmopolita. Ao tratar do cosmopolitismo, Ulrich Beck (2006, p. 109) define que a sociedade pós-moderna sobreviverá se reconhecer a diversidade, que antes era um problema, sendo hoje uma solução, posto que o multiculturalismo irá agregar diferença e integração. Para que isso seja viável, os cidadãos devem se conhecer e confiar um nos outros. A solidez do procedimento para a tomada de decisões acertadas implica num comprometimento mútuo, que é garantido pela lealdade comum enquanto membros da humanidade.

No plano interno, o processo democrático tem que ser, ele mesmo, o motor da integração social. Os cidadãos devem se unir em torno do respeito à constituição e da garantia das liberdades individuais, de modo a permitir a convivência pacífica das diferenças culturas, étnicas e religiosas, umas com as outras. Contudo, em um mundo onde os Estados não são mais a única fonte de regulação política, não basta ser cidadão de um Estado, é preciso também ser cidadão do mundo; ou seja, é necessário que existam canais de participação que permitam aos indivíduos intervirem nos processos decisórios que se realizam nos planos supra ou transnacional. Mas para Habermas, o que é fundamental para que essas reformas sejam efetivas é a transformação na consciência dos indivíduos.

Ele deposita suas esperanças menos nas negociações entre os Estados e mais nos “[…] movimentos sociais e organizações não governamentais, ou seja, os membros ativos de uma sociedade civil que vai além das fronteiras nacionais” (HABERMAS, 2012, p.74). Nessa senda, é do próprio movimento jurídico cosmopolita que surge a validade ilimitada das normas, desde que desligadas de qualquer tipo de vinculação. Nesse contexto, ao permitir novos conceitos políticos e jurídicos oriundos de um direito comum, universal e universável, estar-se-á proclamando que um atentado contra um homem (e um sujeito não humano), aqui ou acolá, representa uma afronta aos seres em qualquer parte do mundo. Em face da recorrente resistência dos governos em honrar a estratégia de integração de Estado, é indispensável que o processo seja adotado de instrumentos com a necessária eficácia jurídica, a começar pela existência de uma Corte de interpretação dos textos acordados. Sem essa mínima institucionalização, o processo de integração ficará ao sabor das crises pontuais que marcam naturalmente esses processos. Assim, o conceito de instituição do Estado no mundo, representando um espaço territorial delimitado, revela-se atualmente desgastada e deve ser recortada por uma perspectiva futura para que os homens e os não homens vivam em uma ordem de paz e direito em sentido global.

É fundamental que os ambientes econômicos, sociais, ambientais e políticos se insiram numa dimensão globalizada, implicando, assim, no afrouxamento dos limites da soberania nacional. Somente a transnacionalização compreendida com uma introdução na teoria do direito de uma terceira dimensão jurídica (o cosmopolitismo), com ascensão do poder da democracia dos povos, é que será possível abraçar novos princípios rumo a uma ordem jurídica justa. Haverá então o direito nacional, o direito internacional e o direito cosmopolítico, que é fruto do desaguamento de uma justiça social. Otfried Höffe justifica a necessidade da existência de uma ordem jurídica e estatal justa para viabilizar a ordem de paz e direito em sentido global. Esse ritmo frenético provoca uma sobrecarga dos estados nacionais, que ainda passam a sofrer, consequentemente, destituição de seus poderes. A ordem jurídica estatal internacional baseada na soberania dos estados nacionais não é suficiente para garantia de uma ordem justa. É preciso fazer uma República das Repúblicas Livres, entendida como uma nova ordem mundial justa, para velar pela segurança e o direito de autodeterminação dos Estados Nacionais (HOFFE, 2005, p. 306). Posto isso, ao estabelecer um diálogo na constelação globocosmopolitizada, para atribuir direitos aos não humanos, tem-se num primeiro parâmetro, o fato de que a humanidade compreendeu que, na esfera do terreno e do efêmero, nada é mais almejado do que a paz e o bem viver, pois esses bens encerram uma promessa de vantagens terrenas, embora o homem se empenhe com todos os outros homens em prol da paz e, finalmente, embora a paz represente a forma de coexistência natural (HÖFFE, 2005, p. 409). E é aliando a visão de Höffe, Habermas e Beck que, no cenário democrático cosmopolita encontrar-se-á o caminho para a possível atribuição de direitos aos sujeitos não humanos. Uma ordem global que conduza a um reconhecimento imparcial dos direitos humanos em escala mundial só é atingível pela via paz (HÖFFE, 2005, 410); a dignidade que atribui o status de cidadania, alimenta-se da valorização republicana da atividade democrática e da respectiva orientação para o bem comum (HABERMAS, 2012, p.130); o cosmopolitismo combina a valoração positiva da diferença com a intenção de conceber novas formas democráticas de organização política além dos estados nacionais, por intermédio da tolerância, da legitimidade democrática e da efetividade (BECK, 2006, p. 49).

É imperativo, portanto, que se fomente a potência da hibridação. Boaventura de Sousa Santos (2016, p. 133) fornece nesse contexto, uma importante ferramenta para essa situação. Ao tratar da hermenêutica diatópica, frisa que a humanidade necessita estabelecer uma globalização contra-hegemônica entre os povos, por intermédio de um cosmopolitismo de insurgência, emancipatório. Apenas com um diálogo multicultural os homens passarão a compreender que todas as culturas são relativas e possuem seus símbolos máximos (topoi) e que as diferentes percepções do que seja a dignidade para cada uma dessas culturas é o ponto de partida para a aceitação das diversas igualdades e diferenças (complexidade intercultural). Assim, partindo da premissa de que muitas culturas são biocêntricas, é deveras limitada visão de que somente a pessoa humana possa ser titular de direitos. O diálogo intercultural deve tomar espaço no sistema mundial, não só para garantir uma política liberal de direitos humanos, mas para contradicotomizar a relação com o não humano na arena dessas lutas transfronteiriças. Assim, resta claro que o reconhecimento de incompletudes de cada cultura nos força a um diálogo, posto que por essa abertura é possível criar solidariedades pelas diferenças, quebrando a ideia de que somente o topoi da dignidade humana é passível de proteção pelo ordenamento jurídico. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento coletiva, interativa, intersubjetiva e reticular. A designação de uma nova modalidade de personalidade jurídica aos animais não humanos, conduzida a partir da perspectiva de outras culturas é um caminho ao diálogo interativo e universal acerca de direitos coletivos, de direitos da natureza, de seres inumanos, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com entidades coletivas, sejam elas a comunidade mundial ou o próprio cosmos (SANTOS, 2016, p. 95). Essa tênue linha divisória entre o sofrimento de um humano e de um não humano passa apenas pelo limite da senciência, uma vez que é inegável o fato de que todos os seres vivos experimentam algum tipo de dor, prazer ou felicidade. Como em tempos passados o homem foi capaz de infligir dor ao seu próprio semelhante (escravos, dominação colonial), na atualidade, embora legalmente proibido de o fazê-lo, não abortou essa prática, e pior, não tomou a necessária consciência de que uma dor sentida por um não humano é tão má quanto a dor sentida por um humano. Certo é que nesse contexto, com a nova revisitação de soberania e de democracia, apenas com a superação desses déficits, diminuindo a distância entre as instituições comunitárias e os cidadãos do mundo é que surgirá uma sociedade global multicultural integrada de forma sistêmica com primazia de direitos subjetivos não só os homens, mas aqueles que pertencem a outras categorias. Desse modo, a cooperação voluntária dos estados em aceitar direitos morais e jurídicos universalmente válidos passa por um refinamento num conceito de dignidade, de bem viver integrado com a natureza, assim entendida como modernização normativa. Ser digno é possuir a autossuficiência elementar primitiva, puramente natural, não fazendo sentido distanciar os seres não humanos dos seres humanos. Apenas com a satisfação de suas necessidades interiores, capazes de proporcionar bem estar, é que surge a paz interna, que se exteriorizará ao nível dos estados como consequência da boa ordem reinante nos seres. Surge claro, portanto, que a transição da cultura antropocêntrica para a biocêntrica dentro de um ordenamento cosmopolita-democrático passa pela satisfação dos direitos de não receber tratamento cruel e torturante tanto de humanos como de não humanos. Nessa seara, os estados democráticos devem perceber e reconhecer na alteridade a renúncia ao antropocentrismo para colocar humanos e não humanos no mesmo plano, partindo do bem viver e da paz como valores chaves, sendo elevados a categoria de bens supremos, para alcançar o cosmopolitismo (reconhecimento mutuo de diferenças como norma de uma ordem jurídica justa integrativa).

  • CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da constatação de que os Estados-Nação estão sujeitos a uma abertura e um espaçamento de seu poderio, o conceito de soberania deve ser elasticizado, na busca do aperfeiçoamento de um manancial intercultural de aceitação das diferenças. A ideia de que qualquer ser vivo reinante no planeta é digno de proteção pelo universo cosmopolitizado, encerra a percepção, antes velada, da premente imperatividade de múltiplas normas que costuram uma nova sociedade mundial. Estender o reconhecimento de direitos tidos inadmissíveis a outras espécies (que não a raça humana) é fundamental para o alargamento da mente e das fronteiras, que culminará com a elucidação do sentimento de pacificação social. É viável conceber a inteligência normativa da criação de uma nova categoria jurídica aos não humanos, a de seres sensitivos, dotando-lhes de uma personalidade jurídica cosmo-animada (termo criado pela autora desse artigo), livrando-os das atrocidades e barbáries das quais sempre foram vítimas. Identificando nos animais a extensão da dignidade que as culturas ocidentais emprestam somente aos humanos, dar-se-á um grande passo rumo a uma comunidade mundial de valores, calcados na solidariedade cosmopolita advinda da legitimidade multicultural de diversos topoi. O bem estar dos povos depende da referência sólida no sentido de que todo ser vivo dotado de um sistema nervoso é capaz de experimentar dor, sofrimento, prazer e felicidade. A paz na vida se prolongará na medida em que o homem for capaz de entender que um mal que pratica a um mal é um mal que pratica contra toda a humanidade. Os não humanos serão titulares de direitos, por todo o globo, na medida em que o modelo comunitário participativo, com a aceitação explicita do caráter plurinacional dos Estados, despertar a consciência nos homens de que a abertura para a mudança real de opressão de minorias começa com o deslocamento do marco antropocêntrico e termina com a absorção e aceitação das diversas cosmovisões espalhadas ao longo do mundo. E essa percepção só se apresentará aos Estados pela teoria da política democrática deliberativa, pois através do diálogo entre diversos atores em múltiplos palcos públicos, será possível estabelecer propostas capazes de levar a sociedade à emancipação de suas amarras. Somente com o rompimento do paradigma de denominação do homem sobre o não homem, para construir uma nova relação baseada na solidariedade e de cooperação com a natureza, abandonando o pensamento de exploração e dominação fundado no modelo do antropocentrismo cartesiano, é que estar-se-á diante da plenitude da concepção do bem comum e de inclusão de minorias nos processos participativos. Urge descolonizar o pensamento estruturado pelas ideias do progresso econômico a qualquer custo, para incorporar a filosofia do bem comum e da paz aos ordenamentos normativos. A união das duas faces de um mesmo referencial, que espelham direitos iguais, em sentidos opostos (côncavo e convexo) ocorrerá com a percepção pelo homem de que é tempo de uma emancipação ecológica.

  • REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich; GRANDE, Edgar (2006) – La Europa cosmopolita. Barcelona: Gráfiques 92 S.A., 392 p. ISBN-13: 978-8449318771

BOBBIO, Norberto (1997) – A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 96 p. ISBN 88-06-12174-X

COMPARATO, Fábio Konder (2003) – A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 624 p. ISBN 9788547216139

HABERMAS, Jürgem (1990) –  Soberania popular como procedimento. Disponível em: http://www.bolivare.unam.mx/cuadernos/cuadernos/contenido/CP.57/CP57.7JurgenHabermas.pdf>. ISSN 0101-3300

_________________ (2012) – Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: UNESP, 2012. 192 p. ISBN-13: 9788539302475

HÖFFE, Otfried (2005) – A Democracia no Mundo de Hoje. São Paulo: Martins Fontes. 608 p. ISBN-13: 9788533621930

KANT, Immanuel (2015) – A paz perpétua e outros opúscolos. Porto Alegre: L&PM Editores. 85 p. ISBN 978-85-254-1758-9

LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn (2002) – Possibilidades e limites da democracia deliberativa: a experiência do orçamento participativo de Porto Alegre. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. 216 p.

NUCCI, Guilherme de Souza (2016) – Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense. 168 p. ISBN 978-85-309-7116-8.

SANTOS, Boaventura de Souza (2012) –Cuando los excluidos tienen Derecho: Justiça indígena, plurinacionalidad e interculturalidad. In: SANTOS, Boaventura de Souza; JIMENÉZ, Augustín Grijalva. Justicia Indigena, Plurinacionalidad e Interculturalidad en Ecuador. Disponível em http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Justicia_Indigena_Ecuador.pdf>. ISBN 978-9942-09-115-4

__________________________ (2016) – Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. Disponível em http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RCCS48.PDF. ISSN 0102-6445

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About: Karen Emilia Antoniazzi Wolf

Karen Emilia Antoniazzi WolfAdvogada, professora e pesquisadora científica.
Doutoranda em Direito Público pela UNISINOS, mestra em Direitos Emergentes pela UFSM e presidente da Comissão Especial de Direitos Animais da OAB/Santa Maria (RS).

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