NOVA APOSTA: A LEITURA DE A REVOLUÇÃO DOS BICHOS PELO TEMPO DO COSMOPOLITISMO MULTIESPÉCIE
10JunKaren Emilia Antoniazzi Wolf
Doutoranda em Direito Público pela Universidade Vale do Rio dos Sinos, Mestre em Direitos Emergentes pela Universidade Federal de Santa Maria. Advogada. Presidente da Comissão de Direitos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Santa Maria
Resumo:
Este artigo analisa a obra A Revolução dos Bichos pelas lentes do movimento do cosmopolitismo multiespécie. Nesse sentido, indaga-se: é possível extrair uma visão antropocêntrica e especista da obra, a fim de incluir o animal não humano na arena social e jurídica e construir uma sociedade multiespécie? Para tanto serão abordadas as categorias do humano e do animal pelo pers- pectivismo e pelo simbolismo, recortados pela era do Antropoceno. Utilizan- do-se do método de abordagem hermenêutico-filosófico, do método de pro- cedimento com método de procedimento bibliográfico e técnica de pesquisa por fichamentos e resumos, concluiu-se que o animal deve ser incluído na considerabilidade sócio-normativa-jurídica, inclusive para evitar os desastres da mundialização.
Palavras-chave: Animal; A Revolução dos Bichos; Homem; Cosmopolitismo Multiespécie; Perspectivismo.
Introdução
É a história que marca o tempo, ou o tempo que define nossa história? A partir dessa inquietação, a análise da obra A Revolução do Bichos será feita pelas lentes do movimento cosmopolita no tempo histórico – chamado Era – do Antropoceno, imprimindo uma roupagem hermenêutica à sátira orwellia- na pelos imaginários de uma comunidade mundial multiespécie de destino. Se existe alguma categoria (enquanto território de existência), capaz de moldar e modificar o agir humano em múltiplos espaços, pode-se dizer que é o tem- po. Nas palavras de Rabinovich-Berkman (2018, p. 101), “el principal capital del humano parece ser su tempo”. Isto porque o tempo, não só é concebido como partículas de instantes gravados na memória do passado, mas também como diretriz para a agilidade das ações no presente, e fomenta o projeto do amanhã que guarda (mesmo que perspectivamente) imaginários no futuro.
Contudo, o tempo humano – entendido o homem enquanto elemento vivo personificado, atribuído de roupagem corporal desconectada da aparên- cia animalizada – encontra-se em um descompasso assíncrono em relação ao tempo animal. Eduardo Viveiros de Castro (2002) entende que os atributos da fisicalidade e da interioridade são qualidades-perspectivas que definem um modo de existir no mundo, tanto para o ser humano, quanto para o ser não-humano. Vale dizer, os tempos são delineados artificialmente pelo homem, seja relativamente, seja universalmente, em fagulhas dissociativas e retributivas para configurar relações entre os desideratos binários da modernidade: ho- mem/animal, natureza/cultura, local/global, capitalismo/comunismo, entre outros avatares dicotômicos. A bitolação das categorias em pares é uma das tragédias em complexidade e coerência das relações no mundo.
Nesse sentido, indaga-se: é possível extrair uma visão antropocêntrica e especista da obra, a fim de incluir o animal não humano na arena social e jurídica e construir uma sociedade multiespécie? Para tanto serão abordadas as categorias do humano e do animal pelo perspectivismo e pelo simbolismo, recortados pela era do Antropoceno. Utilizando-se do método de abordagem hermenêutico-filosófico, do método de procedimento com método de proce- dimento bibliográfico e técnica de pesquisa por fichamentos e resumos, esse artigo será desenvolvido pela interpretação da matriz teórica multiculturalista.
Em sua obra A Revolução dos Bichos, George Orwell (2007) manipula o elemento tempo em um espaço destinado à crítica da stalinização, sedimen- tada no socialismo soviético que trouxe ao homem a Era da Fome (sendo Era definida pela delimitação geológica capitulada pelo Antropoceno). Faz paró- dias, utilizando-se das figuras (sujeitos) animais para denunciar o período de um nacionalismo totalitário, calcado no discurso de manipulação das massas (sendo o povo soviético aqui representado pelos bichos da fazenda) entrin- cheirado nas relações de poder autoritárias.
Inserindo-se na bolha das lutas por combate às desigualdades sociais, Orwell conduz a narrativa na evidência de que o poder corrompe as estrutu- ras existencialistas do sujeito, apenas trocando de mãos em mãos, de autorida- des para outras (conservadoras ou inovadoras). Seus castelos possuem muros que se interpermeiam pelas dinâmicas de novas alianças (“todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros” – 2007, p. 81). O tempo do poder, portanto, não tem limites. Nem mesmo a morte, en- tendida por Rabinovich-Berkam (2018, p. 100) como o catalisador limítrofe da (in)finitude, já que “su ominipresencia nos hace ser conscientes de nuestra brevedad”. E, apesar das inúmeras tentativas no campo da ciência para retar- dar o envelhecimento e, quiçá, driblar a morte humana, o fato é que a maior preocupação da humanidade é a perpetuação no poder – e no espaço temporal onde quer que ele se encontre.
Nesse sentido, as disputas por poder provocam guerras (internas e ex- ternas no contexto dos Estados) e aniquilam a possibilidade de fazer política. Destroçam os mundos, nas comunicações, nas governanças, nas finanças e na vida das sociedades. E são as promessas de livrar-se desses nichos intoxicados pelo poder hegemônico, feitas pelos revolucionários, que os conduz ao cami- nho da corrupção. E a corrupção possui múltiplas facetas, é perversa e abala a confiança na capacidade da sociedade em se reinventar e se renovar.
Assim, pode afirmar que A Revolução dos Bichos também denota uma visão do poder atemporal antropocêntrico e especista, corrupto e aniquila- dor da própria presença da humanidade no mundo. “O homem é o nosso verdadeiro e único inimigo”, principalmente pelo fato de que “o homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim é o senhor de todos os animais” (ORWELL, 2007, p. 12).
Portanto, a exploração do trabalhador no tempo do marxismo soviético já correspondia à exploração do animal, em todos os sentidos, no tempo da humanidade. O desprezo pela vida animal e pelas técnicas do utilitarismo moldaram o discurso da dominação e, ainda, fomentaram no seio do próprio imaginário humano a premissa de que alguns animais são mais merecedores de consideração moral do que outros – ao indagar se “são os ratos camara- das” (ORWELL, 2007, p.14), já se evidencia o racismo entre as espécies, fruto típico da corrupção enquanto poder perverso da época do Antropoceno.
Partindo do espaço tempo desde dois mil anos até os dias atuais, o ani- mal não humano, em lógicas ocidentalizantes e eurocêntricas, sempre foi visto pela dogmática da coisificação, pelo viés do reducionismo da complexidade do mundo em dualismos categorizados: ou o ente é pessoa, ou é objeto. A re- ligião, a ciência e a ética – dependendo do tempo histórico em que se inserem, jamais permitiram o reconhecimento da dignidade da vida do animal.
Contudo, para fins de construção de uma efetiva cultura da paz, pela sobrevivência e existência de todas as espécies, como garantia de um horizonte futuro fundamentado na vida e na liberdade, a ciência deve entender que a evolução se faz pelo diálogo entre os saberes e não pelo encastelamento. No pensamento cosmopolítico de Isabelle Stengers (2011), é preciso fomentar a “ecologia das práticas”, para desconstruir o mito da racionalidade e da neutralidade científica.
Isso porque todas as entidades vivas (humanas e não humanas) estão inseridas no mesmo mundo (no mesmo planeta) e enredadas por esse cenário cosmomundial. Há um compromisso atávico com o cosmos (enquanto lugar/ espaço/tempo). E, nesse viés, não há sentido que se perpetuem, nos padrões escritos posteriormente pela História (notadamente por padrões de corrupção deletérios), as relações de opressão.
E essas relações sempre possuem um eixo comum constitutivo (gênero, raça, identidade, etnia, nacionalidade, espécie), que formam interseccionalidades na sociedade que animalizam corpos humanos (no sentido de retirar o sentido humano do sujeito) e brutalizam corpos animais (pela necropolítica da matabilidade do diferente pela espécie). O primeiro mandamento do pensamento animalista orwelliano evidencia essa beligerância: “qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo” (ORWELL, 2007, p. 9).
O melhor contexto para (re)pensar a relação humano/animal é mul- tipulverizar o pensamento, desconstruindo os sistemas econômicos (sejam capitalistas ou comunistas) e os regimes políticos (tiranos ou democráticos) como entidades metafisicas. Há que ser feita uma “ressingularização individual e/ou coletiva” para a produção da existência em novos contextos históricos (GUATARRI, 2012, p. 15). A revolução molecular para a libertação animal necessita do realinhamento das três ecologias do sujeito: mental, social e ambiental. É necessário instaurar novos sistemas de valoração (novas métricas) para a mudança social que personalize o animal não humano como um novo ator da mundialização.
A força imaginativa e criativa do hibridismo (em oposição ao dualismo) é a ferramenta para evitar que, por medo, o sujeito concorde (mesmo que inconscientemente) com a supressão de seus direitos e liberdades fundamentais, em prol de uma sensação de segurança. A exemplo, pode-se sublinhar a passagem em que o porco Napoleão, quando dissolveu as reuniões de domingo, com uma tirania disfarçada de benesse coletiva, determinou que os assuntos da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos e, por medo da volta do humano Jones, os bichos concordaram.
Não há espaço para heróis e anti-heróis, eis que a perspectiva binária torna a relação de opressão ao animal pelo homem muito mais aguda. E se há algo que a história (principalmente a jurídica) evidenciou, é que nossos paradigmas estão em um incessante campo de construção e desconstrução, em um jogo de hipóteses em conflito, ao sabor dos interesses humanos e das disputas pelo poder (RABINOVICH-BERKMAN, 2018).
Para efetivar o mandamento animal número seis (“nenhum animal ma- tará outro animal” – ORWELL, 2007, P. 17)), o poder de controlar os corpos (no sentido biopolítico foucaultiano) não pode concentrar-se nas mãos de um único sujeito ou de uma minoria, conforme ambicionou Gilgamesh, em sua epopeia pela imortalidade. O poder de decisão deve estribar-se em uma alian- ça de solidariedade em prol da libertação total do humano, do não humano e da natureza.
A multiplicidade, a variedade, a pluralidade, a diferença, a não perpe- tuação dos padrões sociais obsoletos (mais do mesmo, conforme demonstra o propósito da revolução encabeçada pelo porco Napoleão) e a inclusão dos híbridos são as molas alavancadoras de um processo de ruptura do silencia- mento do outro – e de incentivo a alteridade. Mudar é doloroso, mas estrita- mente necessário, pois os parâmetros discriminatórios de outrora não podem ter o condão de escrever a história no futuro.
É inegável que as nossas vidas são construídas sob uma forma humana e antrógena europeizada (resquícios de sistemas de pensamento imperialista/colonialista que se espalhou pelo mundo). O âmbito de considerabilidade e afeto da humanidade é construído sob uma arquitetura contra o animal. A vi- são humana está encarnada nesse padrão antropocêntrico de encarar o mun- do e de estruturar as relações sociais de forma apartada da natureza. O ho- mem é visto como uma espécie singular e excepcional, na qual cultura é um elemento próprio da criação dos domínios existenciais desse mesmo homem. O narcisismo humano construiu uma arquitetura antropocentrada e nortecen- trada, impulsionada por uma máquina antropológica movida por uma acelera- ção destrutiva que embaça as outras cosmovisões.
Pelos terceiro, quarto e quinto mandamentos animalistas orwellianos, nenhum animal usará roupa, dormirá em cama ou beberá álcool, o que de- monstra a preocupação inicial de não imitar os padrões humanos dominantes opressores. Mas, também, por outro lado, evidencia uma lógica dicotômica que impede o giro multiespécie (no sentido de romper o binômio polarizado: cultura versus natureza – homem versus animal).
O que se pretende clarificar é que a própria natureza humana é uma relação entre espécies. Há um sistema de afetação recíproca entre as espécies que tipifica uma diversidade biocultural. Todas as vidas são entrelaçadas na constituição das entidades vivas, pois o mundo existencial está fora da redo- ma do exclusivismo humano. E, no campo das relações de poder, muitas ve- zes, independente da roupagem humana ou animal das aparências externas do ser, a estruturação vivificada do sujeito no mundo é indecifrável.
O tempo com que uma pessoa se mantém nas amarras do poder a con- some e a transforma. Os hábitos se entrelaçam na encruzilhada da liderança, que muitas vezes, dentro dos próprios movimentos de libertação e emancipa- ção, tornam-se racistas e discriminatórios, das portas para dentro da rebelião e, posteriormente, da rebelião consolidada para as portas afora do mundo. “As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossí- vel distinguir quem era homem, quem era porco” (ORWELL, 2007. p. 112).
Portanto, apenas no reconhecimento de outros entes com capacidade e com modos de produzir mundos intraespécies e interespécies, é que se pode pensar em um universo cosmopolita e cosmopolítico. Fomentar o hibridismo simbiótico na máxima: nós somos, porque somos em simbiogênese. Nesse sentido, o fracasso da revolução dos bichos da fazenda em produzir novos modos de existência desumanizada elucida que, os oprimidos, na ânsia de se libertarem das tiranias dos opressores, muitas vezes se tornam os próprios tiranos – e essa não é a lógica a ser perseguida.
Nem o homem e nem o animal devem ser percebidos sozinhos, em isolamento. Nenhum homem ou animal deve ser mantido em cativeiro, nem devem ser considerados sem que suas relações também sejam avaliadas. A pior forma de violência epistêmica é a solidão – e talvez seja esse o motivo do reconhecimento da humanidade e da animalidade como categorias histórico- jurídicas. A própria ideia de humanidade entre os estoicos gregos e romanos
antigos já indicavam o caminho para um cosmopolitismo entre as espécies: “solían ver al hombre estrechamente vinculado com la divinidad en su naturaliza, y tendían a predicar la igualdad y la universalidade del género humano (inclusive el respeto a las demás criaturas y a la naturaliza” (RABINOVICH BERKAM, 2018, p. 193). Prossegue Rabinovich-Berkam esclarecendo que os estoicos já entendiam que a humanidade se tratava de um grande e único povo, habitando a Terra enquanto seu enorme país universal.
Portanto, o tempo do movimento cosmopolita é uma poderosa ferra- menta que reúne suas três fragmentações dimensionais (passado, presente e futuro) e calca-se nos totens: a) do reconhecimento do outro, b) da empatia pelo diferente, c) da sociedade mundial sem fronteiras, d) na mistura de cultu- ras entre as várias espécies, e) na experiencia das crises planetárias como me- canismo, e por fim, f) do antagonismo transversal aos binarismos. Por obvio que a mistura dos povos não é um standard inovador (considerando as inva- sões bárbaras, as migrações, as conquistas, a colonização do sul-global), mas nesse tempo atual é preciso entender que os conflitos tem funções integrado- ras, dada a necessidade de resolução das crises mundiais. E para abrir esse ca- minho de integração, é imprescindível que se faça uso político das diferenças como técnica de agregação das sociedades na agenda mundial.
O papel do cosmopolitismo agora é de postura ativa, de multiplicação de modos de vida transnacionais e transespecíficos, não apenas para combater a globalização provocada pelo “capitalismo mundial integrado” (GUATARRI, 2012, p. 15), mas também para reconhecer os movimentos sociais (como o da libertação animal) como meio de emancipação dos oprimidos. A outridade na relação intersubjetiva deve ser considerada como um elemento de constitui- ção do próprio sujeito.
Na busca por resposta às maiores tragédias da mundialização em tem- pos de antropoceno (desastres ambientais antrópicos, terrorismos totalitários planetários e globalização econômica desenfreada), com uma ambivalência e com uma dialética ainda muito incertas, a própria cosmopolitização faz surgir movimentos anticosmopolitas, que procuram salvar as categorias nacionais, recorrendo aos instrumentos tecnológicos e ao conceito de diversidade cultu- ral característicos da globalização. E isso só aumenta as desigualdades sociais e a fome (estopim da rebelião dos bichos orwellianos) – entendida esta não só como uma necessidade a ser satisfeita, mas como uma categoria social estru- tural utilizada pelo Estado para manipular e controlar as massas.
Assim, ante a tragédia imposta pelo Teorema de Gödel em 1931 (no início do século XX, o matemático Kurt Gödel reconhecia a complexidade no mundo – e se a complexidade existe, o quanto se pode perder em coerên- cia e em completude?), a discussão pela libertação das espécies oprimidas, de forma completa e total, nunca será resolvida pela via das binariedades. Sen- do o mundo complexo, portanto, a setorização excessiva fragiliza a coerência, porque existem hoje vários níveis de produção normativa (regional, estatal, local, normas técnicas); bem como precariza a completude, porque o Direito jamais será uno e completo.
Em verdade, a questão em jogo é definir o que é a ciência do Direito e o que são suas categorias jurídicas, pelo seu papel histórico. Isto porque o Direito não é universal e nem auto-evidente; ele é compulsoriamente aceito pela sociedade (e essa premissa o coloca, num primeiro momento, acima de qualquer crítica). Ele é uma máquina abstrata forjada nos moldes das relações coloniais, sem considerar a pluralidade do mundo. Pelo viés dessa releitura da obra de Orwell aqui proposta, o Direito é uma narrativa histórica discursiva amparado em argumentos especistas e antropocêntricos, criada artificialmente como meio de controle dos corpos dos vulneráveis.
E é essa inevitável complexidade que conduz a uma nova aposta, a uma nova releitura dessa narrativa artificial. A complexidade do mundo real (que é formado por relações multiespécies) não pode ser sopesada pela com- plexidade do mundo do Direito (que encarcera consigo a autoridade de manter o poder de forma monopolística e monocultural). Pela tipologia universal, o Direito existe onde existir sociedade (mas qual sociedade? a branca? a mas- culina? a hétero? a exclusivamente do humano?), pois serve para regular as relações a fim de prevenir a barbárie.
E quem seriam esses bárbaros? Certamente todos aqueles marginali- zados pelo lado de lá da linha civilizatória traçada pelos donos do poder. Na tentativa de afrouxar ou, ao menos, tensionar essa linha, apareceram os direi- tos humanos. Boaventura do Sousa Santos (2010) ao estabelecer uma con- cepção multicultural dos direitos humanos, firma a posição de que eles estão estribados em um conjunto mínimo de pressupostos – que descortinam uma tensão entre regulação social e emancipação social, colocando o real potencial emancipatório na libertação do universalismo e no abraçamento da multiculturalidade.
Contudo, apenas pela perspectiva poética e estética é possível ultra- passar as diferenças entre universalistas e relativistas. Mireille Delmas-Marty (2006) vai elucidar que é preciso usar a poética e a estética da hibridação (uti- lizar a poética e potência da relação entre todas as culturas – a força poética da relação é a energia do mundo) para formar a identidade dos sujeitos (hu- manos e não humanos – todos os entes em seus múltiplos modos de existir e fazer existência no mundo) e criar um cosmopolitismo jurídico a partir dessa licença. Romper a identidade raiz clássica moderna da bifurcação dicotômica das culturas para trabalhar em um cosmopolitismo rizomático (estrutura de ramificação em diversos modos existenciais). A poética das múltiplas relações serve de premissa para a estética do rizoma e, assim, rompe-se com a situação de linearidade do mundo.
Não há mais lugar para a binariedade. Há que ter partilhamento de experiencias e pertinências comuns rumando a uma comunidade mundial de destino (inclusive de riscos). Hoje a paisagem jurídica é do impreciso, do ins- tável e do incerto – esse novo mosaico caracteriza uma desordem normativa uma mundialização anárquica – e é preciso ordenar o plural (com todos os seus atores e em todos os espaços) por unificação, harmonização ou coorde- nação (DELMAS-MARTY, 2004).
E, apesar de que todas essas diferenças dificultem a criação de laços de solidariedades, o próprio reconhecimento dessas incompletudes e de cada cultura força a humanidade ao diálogo intercultural. A comunidade planetária (composta de entes, seres, divindades) é a identidade rizoma (os laços multies- pécies são as teias dessa comunidade). A interdependência, a mundialidade, a condição da dignidade humana e da dignidade do animal são pressupostos para tentar entender um imaginário além do horizonte. Para reinstituir novos poderes é preciso reequilibrar valores. É preciso pensar na preponderância dos atores econômicos no mundo e na insurgência dos atores cívicos, con- frontando a emergência dos valores universais e com os riscos globais. É ne- cessário enfrentar os riscos e a hegemonia da globalização, atentando-se para ameaça que esse mesmo discurso carrega: a de se tornar hegemônico (tal e qual as narrativas dos porcos de Orwell).
Assim, o cruzamento de saberes e o reconhecimento das diferenças, guia a solidariedade entre os povos (humanos e não humanos) para um futuro em que haveria uma sociedade de animais (não humano e humanos) “livres da fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de acordo com sua ca- pacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos” (ORWELL, 2007, p. 72). É evidente, portanto, que centrar a sociedade apenas na figura do homem, mascara a própria definição de vida, que será conceituada por uma bagagem exclusivista e monoespecista.
Por óbvio que não se trata de menosprezar a pessoa humana, nem de desprezar todas as conquistas adquiridas pela humanidade, pois elas interna- cionalizam os direitos humanos. Contudo, o homem, sozinho, não é suficien- te para explicar a proteção dos não humanos. Por isso a necessidade de um enfoque do ideal cosmopolita pelo viés da hibridação, como proposto por Bruno Latour (quando afirmou que jamais fomos modernos), é uma das al- ternativas viáveis. O cosmopolitismo tradicional não enxerga o cosmos, pois centra-se no ser humano. E os seres não humanos são sensíveis (muitos já possuem a senciência cientificamente comprovada – Declaração de Cambrid- ge de 2012), motivo pelo qual deve ser ampliado o dever moral e a responsa- bilidade jurídica dos homens para com os animais, pelos valores da solidarie- dade e da paz.
Conforme a sátira de Orwell, é inclusive possível perguntar: qual o lu- gar dos animais não humanos hoje no mundo? Para onde foram jogados pela modernidade? A época moderna da América Latina, por exemplo, desconsi- derou as culturas tradicionais dos seus povos originários (buen vivir e pachama- ma). Ela desconsiderou os saberes dos povos tradicionais. Ela criou subuma- nidades e subcategorias, baseada em um humanismo corrompido, conforme menciona Felipe Süssekind (2018), evidenciando a supremacia do poder hege- mônico sobre as minorias (eles estas, a minoria dos animais).
Portanto, é imperativo gerar relações de parentesco (cosmopolitismo relacional multiespécie) entre os homens, a natureza e os animais, vistos todos como entidades cósmicas na roupagem jurídica de pessoas naturais, humanas e não humanas. Há que se extrair os conceitos jurídicos das antigas filosofias indígenas e negras, pois o Direito tem que olhar para outras ciências e cam- pos de saber, buscando na história complexa de outros povos, a construção uma comunidade mundial mais justa e estribada na paz.
Urge quebrar o antropocentrismo para dar contornos normativos ade- quados ao animal vivo (e morto): pela antropologia da vida e para a represen- tação os viventes. É uma temática transnacional, pois se a humanidade não conhece mais fronteira, quiçá a animalidade. É chegado o tempo de privilegiar as múltiplas visões, os saberes plurais e as diversas perspectivas (pontos de vista no mundo, conforme elucida Eduardo Viveiros de Castro). A própria história é feita de perspectivismos, como se verifica na passagem sobre a ane- dota de um rei hindu, um elefante e três cegos, trazida a luz pelo historiador Ricardo Rabinovich-Berkam (2018, p. 111). A fim de que esses mundos plu- rais não se percam na redução de uma cultura utilitarista, liderada pelo homo economicus, é preciso resistir (ou revolucionar) às grandes narrativas do ociden- te moderno.
Ao tentar revolucionar o seu mundo na fazenda (o mundo da periferia, dos marginalizados, dos discriminados, dos oprimidos), os porcos orwellianos lideraram uma emancipação animal sob a insígnia de que todos os animais seriam camaradas e irmãos, e que jamais haveria tirania entre eles. Sob sonhos e promessas, a bandeira do movimento animalista dos “Bichos da Inglaterra” era a igualdade entre os animais e a jura de nunca repetir os padrões e hábi- tos humanos (“os bichos destruíram tudo o que lhes recordava Jones” – OR- WELL, 2007, p. 22).
Entretanto, apesar do sonho revolucionário ter impulsionado os ani- mais da Granja do Solar (esse era seu cosmos), rapidamente os porcos assu- miram o papel que antes pertencia ao humano tirano, posto que o poder e a razão (faculdade relegada aos sábios), impregnados de violência intrínseca, tornaram os outros bichos (perante os olhos do autoritarismo suíno orwel- liano) em seres primitivos que deveriam ser tratados como meras máquinas produtivas.
A paisagem multiespécie não permite a perpetuação cíclica dessa bar- bárie, posto que calcada na premissa de que todas as espécies são compa- nheiras. A própria natureza humana é uma relação entre espécies. O que as separa são os ideários de poder por domesticação, que age como uma “linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem” (TSING, 2015, 184). E nessa dinâmica, John Rawls inclusive formula sua teoria de Justiça, pelo véu da ignorância, na qual todos os indivíduos são ao mesmo tempo racionais e razoáveis, e teriam o poder de tomar decisões em uma assembleia mundial imaginária, sem saber previamente se são ricos, pobres, pretos, bran- cos, homens, mulheres (devendo ser acrescida a essa lista de binariedades, a dualidade humanos/animais).
Os racionalismos do discurso do método (escola cartesiana), que bifur- caram o mundo (inclusive o mundo jurídico), pelas ideias do raciocínio lógico matemático, de exponencia geométrica pela lucidez iluminista dos argumen- tos científicos, conduziu o homem à conclusão de ser necessário um pacto social que os guiasse para fora de seu estado de beligerância natural (como esclarece Rabinovich-Berkam: p. 403/420). Afinal, homens livres, cultos, sá- bios e letrados não são os únicos poderosos? Portanto, somente eles teriam o dever moral (enquanto privilégio) de tomar as decisões políticas, inclusive em prol daqueles que são excluídos desse círculo seleto das luzes: os classificados como bárbaros e selvagens. E a roda das exclusões e das subumanidades se mantem intacta com o passar do tempo.
Assim, é preciso ter uma Constituição Cosmopolita Simbólica Reflexi- va (abrangendo os direitos humanos e os direitos dos não humanos – como reflexos inversos e de proteção da própria humanidade). Deve-se formar essa constituição pelo alargamento da interpretação das bases normativas das ca- pacidades codificadas das pessoas, pelos instrumentos da cosmopolítica (pela técnica das forças imaginativas do poshumanismo).
Alargar e reinventar o conceito de personalidade jurídica para além da pessoa humana (sujeito humano). E esse simbolismo que se extrai da inter- pretação (hermenêutica filosófica ou sociológica) de normas morais e jurídi- cas (paz, felicidade e dignidade) reconhecidas ao longo do mundo, deve se tornar aceito pelas culturas ao redor dos muros da mundialização. E é pelas relações de parentesco, inicialmente proposta pela revolução dos bichos da fa- zenda, extrai-se a técnica cosmopolítica do simbolismo. É sabido que Marcelo Neves (2009) explora a ideia de Constituição Simbólica como um mecanismo de judicialização da política e de politização do jurídico. Contudo, o ideário de um cosmopolitismo coerente, baseado na relação jurídica de parentesco multiespécie, que parte das ideias dos porcos da Granja do Solar (no início da revolução), deve ter a finalidade de evitar condutas facistóides como as que restaram evidenciadas ao fim do movimento animalista de Orwell.
Conclusão
Pela análise da obra, através da interpretação hermenêutica da relação fática de interdependência entre o home e o animal, constatou-se ser neces- sário que se criem novas simbologias, que sejam reflexivas entre as múltiplas espécies, entre as múltiplas culturas, entre os múltiplos modos de existência no mundo, dado que os símbolos vão sendo destruídos pela força das coisas (e isso é histórico, é atávico, é antropológico). Na nossa era temporal do An- tropoceno, as instituições são os símbolos que nos dominam, que nos domes- ticam e, as normas extraídas dos mercados financeiros, estão exigindo que o homem construa uma nova simbologia – a fim de que esses símbolos tenham uma força normativa.
A fraqueza do universalismo ou a incompletude de ideias (conceitos maleáveis, fluidos) levaram ao questionamento no sentido de ser humanidade a única categoria com direitos no mundo e, além, à dúvida de quem estaria inserido nessa humanidade. Verificou-se, portanto, que a construção histórica da humanidade é uma falácia, pois na maior parte desses arquétipos só há guerra e destruição. A técnica levou a destruição e ao abuso dos outros seres (entidades não humanas) que estão ofendidos com a brutal incapacidade da humanidade em gerenciar o mundo.
Nessa seara, agora é dado o tempo de parar o jogo do canibalismo cul- tural. É hora de mudar, de honrar os sonhos e conhecimentos ancestrais para um abraço planetário, forjado em um pacto comum a partir das diferenças. É preciso tecer novas ações para a emancipação de todos os seres oprimidos pela visão da coletividade, pela técnica que sepulta a polarização dos afetos e emerge na imposição para a empatia cosmopolita. E, nesse novo cenário, os animais não humanos devem estar social e juridicamente considerados, para que novas tragédias sejam evitadas.
Referências
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