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O POSHUMANISMO CONCEBIDO PELA TECNOLOGIA: QUANDO O ROBÔ E A INTELIGENCIA ARTIFICIAL podem salvar OS ANIMAIS

Karen Emilia Antoniazzi Wolf

Doutoranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Jânia Maria Lopes Saldanha

Doutorado em Direito Público pela UNISINOS

(Universidade do Vale do Rio dos Sinos).

RESUMO Este artigo versa sobre a influência da tecnologia na subjetividade individual,
humana e não humana, pela quebra do paradigma antropocêntrico. Nessa seara, indaga-se: é
possível que a tecnologia seja utilizada para salvaguardar a dignidade e a existência livre de
tortura dos sujeitos? Para tanto, o trabalho foi dividido em duas seções. A primeira trata do
devir da potência do ser vivo animal – a tecnologia como ferramenta trans e pós humana para
ruir o antropocentrismo. A segunda cuida dos animais robôs: o transhumanismo tecnológico
como ferramenta de salvaguarda dos interesses subjetivos das entidades sencientes humanas
e não humanas. Utilizando-se do método de abordagem fenomenológico hermenêutico, com
método de procedimento bibliográfico e técnica de pesquisa por fichamentos e resumos,
conclui-se que a robotização por substituição é a versão tecnológica que salvaguarda da
dignidade animal, humana e outra que humana

1 Introdução:


O mundo do Direito é um mundo tardio. Notadamente, após a revolução tecnológica, as Ciências da Computação encurralaram o ordenamento jurídico e os acontecimentos naturais no limite da finitude de seus tempos. A certeza, a segurança e a estabilidade normativas agora encontram-se vagas, fluídas e flexíveis. E os conceitos tradicionais cunhados no viés antropocêntrico e especista vêm sendo desconstruídos pela lente do desenvolvimento científico-tecnológico. A inteligência artificial vem insculpindo símbolos que criam mecanismos simuladores da capacidade humana de
ser inteligente (o homem-razão sem vendo substituído pelo homem-informático). Nesse contexto, os direitos humanos estão ante o surgimento de novas figuras, novos sujeitos, novas pessoas. Isso porque os nichos de subjetividade humana circundam três bolhas nesta era: a do antropocentrismo, a do transhumanismo e a do poshumanismo.


Nesse sentido, atributos como consciência, senciência e cognitividade, não mais se reduzem à caracterização apenas do humano, mas abrangem outros animais e máquinas (robôs, ciborgues e inteligência artificial). As estanques definições das categorias filosófico-jurídicas em relação às pessoas e aos sujeitos de direitos – enquanto entidades subjetivas portadoras de dignidade e personalidade própria –ruíram ante as fronteiras do antropoceno
1. A subversão da natureza e da natureza das coisas provocou a quebra do imaginário coletivo focado na figura única do humano. A
história e a experiência da própria humanidade demonstraram que a sociedade monista se tornou pluralista. A diversidade se sentiu pressionada pelo peso da legalidade positiva que encastelou o humano no ápice da sua proteção
coisas provocou a quebra do imaginário coletivo focado na figura única do humano. A história e a experiência da própria humanidade demonstraram que a sociedade
monista se tornou pluralista. A diversidade se sentiu pressionada pelo peso da legalidade positiva que encastelou o humano no ápice da sua proteção.

O tempo do direito agora é o do discurso do dinossauro (ONU, 2021), o tempo
de não escolher a extinção em massa, de não gastar milhões de dólares em exploração animal, combustíveis fósseis, tráfico de humanos e de animais selvagens. É tempo de investir em combater os males que assolam o planeta: a fome e a miséria, a alteração climática, a crise ambiental, a exploração animal e as crises sanitárias. É o tempo de alinhar as novas tecnologias com a garantia e a salvaguarda dos direitos fundamentais, não o oposto. Algoritmos, big data, inteligência artificial, robonóides e ciborgues são ferramentas que devem assegurar e preservar a dignidade de seres sencientes. Tal preservação decorre do fato de os animais, humanos e não humanos, ocuparem uma posição relacional no tempo e no espaço local/global, enquanto sujeitos de direitos
concretados no conceito de pessoa natural, portanto, portadores de dignidade
 e submetidos à constante influência da tecnologia. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a era do antropoceno também abrange a era digital.

A era digital, portanto, não distingue quem é o beneficiário (usuário) de suas normas ou técnicas. Não faz distinção se o sujeito a ser atingido pela tecnologia possui pernas, patas, rabos, mãos ou asas. A digitalização ou virtualização dos espaços não diferencia quem opera os sistemas e nem quem deles se favorece. Foi a tradição ocidental de racionalidade que manipulou a natureza para sustentar e legitimar a razão como um instrumento de clivagem, de separação e superação do humano frente ao animal e aos demais sujeitos vivos. O sujeito humano, separado e superior, foi concebido como um pressuposto íntimo e necessário para sedimentar um projeto civilizatório (empreendimento colonial) moderno, de consolidação de um humano (sujeito) universal de dominação (e acabou-se criando um ente narcisístico, ocidentalocêntrico e falocêntrico). 

É nesse cenário que esse artigo versa sobre a influência da tecnologia na subjetividade individual, humana e não humana. A pergunta do problema é tanto desafiadora quanto inovadora: é possível que a tecnologia seja utilizada para salvaguardar a dignidade e a existência livre de tortura dos animais enquanto sujeitos de direitos? Com o objetivo de indicar algumas pistas e não respostas definitivas, o trabalho foi dividido em duas seções. A primeira trata do devir da potência do ser vivo
animal e o uso da tecnologia como ferramenta trans e pós humana para ruir o antropocentrismo. A segunda cuida dos animais robôs e do transhumanismo tecnológico como ferramenta de salvaguarda dos interesses subjetivos das entidades sencientes humanas e não humanas. Utilizou-se o método de abordagem fenomenológico hermenêutico, com método de procedimento bibliográfico e técnica de pesquisa por fichamentos e resumos.

2 O devir da potência do ser vivo animal – a tecnologia como ferramenta trans e pós
humana para ruir o antropocentrismo

Diante das novas tecnologias, notadamente a inteligência artificial (PÉREZ, 2009), novas subjetividades se formam e emergem nessa era como fruto do estranhamento da ética antropocêntrica ante a metamorfose do mundo (BECK, 2018, p. 10) (2.1). O desafio é, portanto, saber como explorar o fluxo digital, interligando o local e o global, com objetivo de fortalecer os direitos subjetivos dos animais humanos e não humanos, notadamente por conta da globalização econômica e dos interesses das empresas transnacionais a que servem (2.2).

2.1 A fronteira humano e não humano

O imaginário coletivo dos modernos concebeu e manipulou a noção de humanidade como um plano civilizatório e seletivo para uma parcela específica de humanos que são postos como universais. Nesse contexto, uma mulher negra oriental ou um nordestino semiárido jamais serão modelos epistemológicos de sujeito social e de direito. Isso porque, ao pensar a humanidade, imediatamente surge no ideário a imagem de um sujeito específico: humano, homem, branco, europeu, cristão, dono do capital, letrado, cisnormativo, com a corporalidade apresentada como sã (saúde física e mental). E o animal se insere nessa humanidade dicotômica (humano/não humano,
cultura/natureza, homem/máquina) como uma realidade manipulável, objeto inclusive da metafísica da purificação – o corpo humano é um corpo animal purificado vindo após uma noção pretérita de um estado natural – servindo como instrumento de manobra a serviço de interesses e agenciamentos específicos. Assim, homem e animal são polos distintos que se completam – identidades divergentes e complementares – restando evidente que as métricas do sexo, do desejo, da espécie e gênero, imanentes a natureza, são utilizadas para identificar uma normatização de interesses dominantes.

Por outro lado, quando determinados sujeitos não interessam ao discurso hegemônico, são vistos como algo negativo, indesejável, abjeto, repugnável. E o que é indesejado dentro da sociedade é reputado enquanto animalesco. Nesse cenário, os robôs e ciborgues também eram considerados uma hibridação grotesca e animalizada do humano, até o momento em que as tecnologias avançaram em direção à manipulação de dados, ao controle dos corpos por algoritmos e ao prolongamento da vida. Portanto, se até a quarta revolução industrial quando, então, houve a emergência de um grande conjunto de tecnologias, a consciência racional e sensorial era o atributo que separava os humanos dos outros animais, após esse marco, agora essa mesma consciência é o limite – a ser ultrapassado? – do humano para a máquina. Assim, evidencia-se que a figura (ou o status) do humano é uma norma de poder construída sobre uma ficção negociável, com limites porosos, plásticos, que são manuseados e utilizados de acordo com interesses próprios.

A fronteira humano/não-humano é um eixo do próprio conceito da humanidade que, deve ser afirmado, implica reconhecer um contra-conceito: o animal, ou a máquina, é o exterior constitutivo da humanidade. Descola (2012) afirma que a tensão dicotômica cartesiana entre o homem e os outros animais (corpo versus alma) agora deve ser revista pelas categorias ontológicas da fisicalidade e da interioridade. São conceitos estruturais mínimos, a partir dos quais derivam modelos diferentes de permutação e constituição dos sujeitos (humanos e não humanos) e servem de fundamento teórico para afastar o reducionismo do antropocentrismo e resgatar o animal para dentro dos pactos sociais. Qualquer outra interpretação é especista (RYDER, 2020) e racista. Nesse sentido, o especismo é um instrumento de afirmação da humanidade, de legitimação dessa ordem normatizadora do desejo, dos corpos humanos e não humanos desejados. O especismo é uma ordem que domina corpos de todas as espécies animais (do homem inclusive), sujeito ao domínio do antrophos (do exercício da soberania do antrophos). Nesta seara, o especismo é um marcador e uma técnica de necropolítica – pois o sujeito legitimado pelo antropocentrismo falocêntrico tem o poder de decidir sobre a matabilidade ou não dos corpos humanos e dos
animais. A forma “Homem” torna-se transcendental, em detrimento das vidas outras
que são apropriações, que estão em estado de sujeição.

2.2 As novas tecnologias: o que se pretende conservar e inovar?

Pensar que a história da emancipação da humanidade ao longo dos séculos passa por períodos que vão desde a invenção da escrita até a comunicação eletrônica, é pensar que todos os movimentos sociais e políticos travados no progresso humano, como a descolonização, abolição da escravatura, queda das ditaduras, feminismo, sufrágio universal, democracia, reconhecimento dos animais como pessoas, criação de robôs, ciborgues e da inteligência artificial, atingiram hoje um acelerado ritmo de troca de informações em tempo real. Isso possibilitou a participação popular que
clama por justiça social, impulsionando-a para as novas e iminentes batalhas sociais.

Nessa senda, apesar da rigidez estatal e de outros desafios ainda não enfrentados, as novas tecnologias estão criando um campo de atuação dos sujeitos que jamais irá se fechar, mas somente se alargar. E, o movimento de emancipação humana, e não humana, será possível no meio digital – com sentido de inclusão – quando os principais recursos utilizados pelos governos, e por outros atores privados, forem efetivados para salvaguardar os direitos fundamentais. Nesse sentido, surge o que se pode chamar de esperanto digital. Porém, importa destacar que as redes
sociais de informação trazem o risco de acorrentarem seus adeptos a um presente imediato, muitas vezes sem fundamentação consistente, densa ou profunda. Portanto, é necessário atentar-se à faceta negativa do alto fluxo de informações e do seu crescimento quantitativo a respeito das tecnologias, que na maioria dos casos não se traduzem em ampliação do conhecimento. O risco de formação de um proletariado intelectual sem nenhuma consistência é evidente, posto que os algoritmos, a inteligência artificial, os robôs e o big data igualmente promovem uma estrutura
vertical das relações sociais, levando a despersonalização do sujeito.

Desse modo, apesar dos riscos, é importante assinalar que a utilização das novas tecnologias deve ter por finalidade promover a construção de espíritos livres e críticos, na solidificação de valores e bases avaliativas no mundo real. De igual maneira, sobretudo, deve contribuir para criar a ação para uma sociedade aberta e livre. Entretanto, essa sociedade aberta e livre somente será efetivamente pautada pelas liberdades se os animais não humanos forem considerados nessa inclusão. O imperativo da justiça e da paz, estribado no círculo da dignidade, implica no reconhecimento de uma virada antropológica que denuncie e não normalize o sofrimento animal. A boa convivialidade (CAILÉ, 2020) se pauta na readequação dos papéis de cada indivíduo na sociedade. E, assim sendo, já é passado o momento em que os animais não humanos devem receber um papel de pessoas naturais colaborativas com a sustentabilidade planetária e o equilíbrio de uma reterritorialização contra os desafios ambientais, individuais e coletivos. O desafio, portanto, é utilizar as tecnologias para salvaguardar os interesses e os direitos dos animais, como por exemplo no caso dos animais robôs para substituir os indivíduos em cativeiro (zoológicos, oceanários, aquários, circos, shows, etc.). As tecnologias elucidam o fato de que o humano não se separa mais do não humano, não há mais distinção entre essas categoriais, pois (principalmente em relação à máquina), o que importa é o devir da potência do ser vivo. 

O animal humano que serviu de rótulo, ou seja, uma forma de labelização do indivíduo, para o parâmetro do agir em liberdade e do exercer direitos na rota da dignidade, foi a figura do homem racional, branco, ocidental, cristão, liberal e heterossexual, conforme já frisado. Ele é o centro de tudo, inclusive do ordenamento jurídico da maioria dos países modernos. Esse mesmo homem, dotado de razão, criou mecanismos estruturais de exclusão, por conta de métricas discriminatórias e sempre justificou a marginalização dos diferentes na necessidade de manter ativo o progresso científico tecnológico. Tanto é verdade, que escravizou, objetificou, dominou e oprimiu todos os seus diferentes – a natureza e os animais não humanos –, em nome da ciência. E o Direito, enquanto carga narrativa discursiva, artificial, criada por esse homem para ele mesmo, acompanhou esse padrão de normas. Contudo, o homo sapiens opressor, ao passo em que bifurcou a humanidade criando bolsões de outsiders (KRENAK,2019), também projetou sua transcendência física e cognoscível para a criação de uma nova espécie: o homo roboticus, com aspirações planetárias, mesmo com suas diferenças: fazendo surgir o transhumanismo e o poshumanismo, e forçando a releitura dos sujeitos de direitos, ou melhor, de novos sujeitos titulares de direitos fundamentais.

E isso foi possível em decorrência do avanço no campo das comprovações científicas dos critérios da senciência, da cognitividade e da capacidade em múltiplas formas de vida, que não a exclusiva do homem. A senciência animal (SINGER, 2008) e a inteligência artificial (DOMINGUÉZ, 2019) evidenciaram a crise do antropocentrismo e trouxeram a força imaginativa da ciência e do Direito para um ponto de convergência: o nó que une o presente dos animais não humanos com o futuro das inteligências autônomas. Essa é a primeira, de muitas ferramentas tecnológicas e digitais, que podem criar os robôs-ciborgues agora vistos como o novo outro: o medo do desconhecido está abrindo espaço a um futuro distópico. Portanto, a revolução digital do século XXI criou um caminho de articulação social complexo, no intuito de ultrapassar a fome, as guerras, as epidemias e, também, o próprio homem. A engenharia biológica e o desenvolvimento tecnológico irão fazer acender um novo ser: um homem-deus-imortal sem data de caducidade, cujo fim apenas dependerá de um acidente técnico ou de um ato de guerra.

Nesse contexto, homens e mulheres perdem seus valores, suas famílias imortais adotam um novo significado e a tarefa do Direito será a de encontrar novas funções, ante algoritmos de busca que podem localizar inúmeras definições do que é um ser humano. Esses algoritmos externos acabarão por conhecer o homem mais do que ele mesmo, e a nanotecnologia e a engenharia genética seriam a interface cérebro-computador a definir o lugar que cada um ocupará na sociedade. A fusão da inteligência artificial com as funções cerebrais humanas impactará nas capacidades cognitivas, emocionais, de aprendizagem e de memória: o cérebro, que é o órgão chave da nossa espécie, que por milhares de anos tem sido quem gerou a tecnologia, agora também será um produto biotecnológico. E assim, todas nossas informações, dados, estatísticas e, pior, toda nossa subjetividade estará nas mãos de dispositivos eletrônicos que se multiplicam num ritmo frenético, impulsionando empresas que capturam milhões de bytes de informações sobre seus clientes a operar por intermédio de redes que estimulam o crescimento exponencial de comunicação máquina a máquina.

E esse diálogo proporcionado pela gramática do big data é um paradigma para tornar possível a compilação, o armazenamento, a gestão, análise e a visualização de um enorme conjunto de dados heterogêneos de todas as pessoas e que permite, ante o rastro digital dessas almas, examinar o volume, a velocidade, a variedade, a veracidade e do valor da inteligência humana. Essa inteligência que foi capaz de gerar máquinas com a mesma capacidade de realizar tarefas típicas dos homens. Nessa seara, a implicação moral da mutação antropológica – ciências cognitivas e inteligência artificial são frutos de estudos tecnológicos – está calcada na ideia de que a tecnologia irá realizar todas as aspirações da espécie humana: é o transhumanismo. O humano está no limiar de uma ruptura com o seu eu, pois a singularidade (HAN, 2020, p. 271) permitirá uma inteligência artificial com consciência dela mesma triunfar (trazendo o risco de, possivelmente, a inteligência humana se tornar totalmente obsoleta) – esse é o anúncio do advento do poshumanismo.

E assim, o único atributo que o homem sempre utilizou para o encastelar num patamar de superioridade em relação aos demais animais, ou seja, a inteligência racional, ruirá por completo. E mais, restará definitivamente comprovado que essa inteligência nunca foi, de fato, um critério absoluto para essa divisão entre animais humanos versus animais não humanos, pois do contrário, ela não pereceria frente a uma inteligência artificial. De acordo com o Segundo Manifesto da Convivialidade (CAILÉ, 2020) essa teoria transhumanista está associada ao movimento da Contracultura da década de 1960/70, pois com o descobrimento da informática, percebeu-se que havia um instrumento capaz de formalizar seu ideal de ruptura: seria possível colocar várias comunidades de vida em comunicação e utilizar a tecnologia para controlar o poder dos Estados Centrais. Contudo, os instrumentos da informática, que eram considerados como mecanismos de emancipação, se transformaram em supermáquinas. Se transformaram em fábricas que produzem alienação e não emancipação. Nessa seara, Jean Michel Besnier (2022) alerta para o fato de que os transhumanistas não estão a serviço da humanidade, mas sim a serviço do desaparecimento da humanidade (dos ideais de liberação foram para a prática da restrição). Isso porque a tecnologia é baseada em sinais numéricos que procuram produzir comportamentos. Nesse sentido, a atualidade do pensamento de Nietzsche é inegável: os transhumanistas não desejam um super-homem que assuma o desejo de poder, o poder de viver, a vitalidade fundamental, mas sim um homem aumentado, que é aquele que substitui a própria vida pela tecnologia, que desloca o ser vivo para o ciborgue.

Portanto, as tecnologias devem ser usadas para conduzir a humanidade ao caminho certo. E para tanto, mais do que certezas, é necessário fazer as perguntas certas. Isabelle Stengers (2010), ao redigir sua proposição cosmopolítica para entender e mudar o pensamento do mundo que está sendo guiado pela tecnologia, indica ser necessário perguntar lentamente. Questionar para discutir dificilmente. É preciso formar uma ecologia entre diversos saberes, ou seja, não pacificar os múltiplos saberes, mas potencializá-los em aliança. Assim, em relação à influência das tecnologias na subjetividade humana, o que se pretende conservar do humano hoje? Por que a própria humanidade insiste em não gostar do humano? E essas mesmas perguntas servem para os outros animais. Em pleno antropoceno, há intenção de conservar os animais, em salvaguardá-los? Por que há uma resistência em não gostar ou não considerar os animais outros que humanos? Essas perguntas residem no campo das utopias (WOLFF, 2018) poshumanas e da relação do animal humano moderno com a tecnologia: a era do transhumanismo força o revisitar das atitudes. Nessa senda, o esgotamento do humanismo tradicional na perspectiva de superar o racionalismo da modernidade e a inclusão da relação com os animais não humanos revelam o problema da relação entre a tecnologia e a realidade: o humano está cansado de si mesmo. As nanotecnologias, as biotecnologias, as ciências da informação, as neurociências, convergem para o fenômeno de perseguir um homem melhorado. E, para isso, as tecnologias necessitam conduzir a humanidade para algo mais imaterial, para o livramento da matéria, do corpo.

E esse sempre foi o objetivo do homem em relação ao animal: se livrar do corpo. O corpo animal é descartável, é um instrumento utilitarista destinado a alimentação, ao vestuário, ao experimento e ao entretenimento humanos. O corpo animal sempre foi aprisionado, torturado, engaiolado, oprimido, massacrado. Sua alma, seu espírito, seu sentimento, sua mente, sua consciência, sua senciência, ou seja, toda a sua existência individual, radicalmente, sua vitalidade fundamental, nunca foi inscrita no círculo da consideração moral da humanidade. E agora essa mesma tecnologia do transhumanismo que descarta o corpo vivo – abrindo espaço para os robôs e os ciborgues – talvez possa ser a salvação da vida do animal. A ideia da contemporaneidade é o digital e o algoritmo triunfarem. Esse triunfo será a desmaterialização, será a realização do pensamento integral (que é a conexão imediata do cérebro com a internet). Implantes intracerebrais que fazem uma ligação direta com a imortalidade (transferir o cérebro para chips eletrônicos, transferir o cérebro para o ciberespaço, permitindo a imortalização do animal humano e não humano).

3 Animais robôs: o transhumanismo tecnológico como ferramenta de salvaguarda dos interesses subjetivos das entidades sencientes humanas e não humanas.

A visão transhumanista é uma visão de ruptura e não de progresso. É um olhar voltado ao estímulo da tecnologia até o ponto de a entidade viva senciente ceder o seu lugar a uma inteligência artificial, a um ciborgue, ou a um robô (3.1). Por outro lado, o alargamento da vida, com identidades complexas, forma uma nova dimensão dos direitos na medida em que se está (re)construindo uma identidade híbrida (do animal com instrumentos tecnológicos) (3.2).

3.1 Transhumanismo tecnológico: salvaguarda de subjetividades

Stefano Rodotà (2014) afirma que hoje na era antropocênica do fim da geografia a internet trouxe a era do mar sem limites, traduzida na maneira de navegar pela rede, a lógica do multinível, com o fim dos territórios, que provocou a crise do estado moderno, evidencia que a saída para esse mundo sem centro, está, aparentemente, na organização dos corpos eletrônicos. Esses são um conjunto de informações que afetam um sujeito, mas quando saem para o exterior se transformam, se distribuem pelo mundo e contribuem para a definição das identidades dos outros. E, assim, define que o homem é artificial, posto que não é mais a unidade física, delimitada pela pele, o invólucro do espaço do corpo, que caracteriza o ser humano. Esse se dilata em algo que exige um constante trabalho de reconhecimento, seja por meio de bancos de sangue, do cordão umbilical, de gametas, embriões e células dos tecidos (RODOTÀ, 2021, p.113 -144).

E, certamente, o significado dos direitos muda à medida que essas dinâmicas se entendem como um desmembramento do que deve estar sob o controle dos próprios interessados. Há um modo diverso de possuir um mundo através da extensão no corpo pelo próprio corpo. Ao mesmo tempo, diversos instrumentos que deixam o corpo protegido ou melhorado são considerados objetos das fronteiras humanas. É a simbiose entre corpo e tecnologia. Nesse sentido, nada mais é exclusivamente humano. Nada mais é exclusivamente animal. É a utopia, ou distopia, que traduz o espírito do tempo hodierno (OST, 1999). Logo, torna-se imperativo pensar que “O problema do robô não é um problema de tecnologia, mas antes de tudo é um problema de moral e de política, isto é, de coexistência numa civilização possível” (BESNIER, 2022). Tal problema evidencia questões de vulnerabilidade e fragilidade dos animais, humanos ou não. A condição de ser ou estar humano, ou não, é dada ao nascer, mas isso não retira do corpo vivo o sofrimento, a doença, a dor, o prazer, a felicidade, a alegria, o envelhecimento e a morte. Essa é a condição da existência do que é um ser vivo senciente. É o existencialismo estruturado nos padrões da biologia e da química.

E as tecnologias pretendem suprimir esse processo para fabricar entidades vivas que não experimentarão a dor (neurociência) e nem a morte (células tronco). É um agir ofensivo, de ataque, contra a vida natural como ela é dada (a condição dos animais é a mesma que a dos seres humanos nesse contexto). O lado positivo é justamente reconhecer que a criação de seres cibernéticos, livres de sensações, poderão substituir os seres vivos em condição de sofrimento. Conforme informações da CNN Brasil (CNN BRASIL, 2022), a Edge Innovations (companhia norte-americana que tem uma divisão de efeitos especiais e de bonecos animatronics na Califórnia), projetou o golfinho-robô, criando a expectativa de que esses robôs com inteligência artificial possam ser usados como entretenimento em parques temáticos, no lugar dos animais capturados. “Atualmente há 3 mil golfinhos mantidos em cativeiro e sendo usados para gerar bilhões de dólares. Por isso, há obviamente um interesse e amor do público sobre os golfinhos”, disse o fundador da Edge Innovations, Walt Conti.

Portanto, para fins de salvaguarda de direitos humanos e direitos não humanos, o bem-estar e a dignidade dos seres sencientes, um futuro pós biológico se desenha no cenário da mundialização: surgem os novos sujeitos robots superinteligentes considerados descendentes mentais e culturais das espécies humana e não humana. Essa inteligência artificial forte, a deep learning, alude a uma máquina com a capacidade de um sistema para imitar certos processos cognitivos e gerais do comportamento vivo. Esse é o grande coração do futuro: a tecnologia de todas as coisas, que une redes de comportamento social, sensores de saúde, e padrões de conhecimento interconectados pelo mundo digital. E, como inteligência e consciência4 são características muito distintas, os robôs substitutos (RAATZ, 2020) dos animais cativos resguardam a integridade e a dignidade daqueles seres que jamais deveriam ter sido traficados de seus habitats naturais.

E, então, os animais de outrora, vítimas do antropocentrismo e do especismo, utilizados e explorados pelo homem para todos os fins, como alimentação, vestuário, cosméticos, fármacos e lazer, agora estão sendo elevados a patamar de sujeitos, de novas pessoas, dotadas de dignidade e de direitos fundamentais – tais e quais os direitos humanos – posto que entidades vivas sencientes não podem ser alvo de escravidão, exploração, objetificação. São o reverso dos direitos humanos. Isso porque se, ao mesmo tempo a fusão do homem com a máquina cria um sujeito imortal, pois a velocidade do tempo escapa a longevidade do robô, por outro, as emoções e o corpo dos animais humanos e não humanos cumprem um papel essencial no processamento cognitivo, de tal forma que os circuitos neuronais agem de forma interdependentes e interagem com o funcionamento dos processos mais elementares. Nesse sentido, a memória, as decisões, o raciocínio, conduta moral e social, ou seja, as informações nunca são processadas de forma puramente racional, pois cada ser está integrado com suas experiências passadas e com as sensações corporais para interpretar o mundo ao seu redor.

Assim, a inteligência artificial pretende unir o homem com a máquina por intermédio de implantes tecnológicos que potencializem o rendimento da mente e do corpo, avançando para o cenário do transhumanismo e do poshumanismo. Naquele, supõe-se a superação da evolução biológica baseada nas seleções de variáveis aleatórias baseadas na tecnologia. Surgirá um novo sujeito descendente da nossa linhagem, mas muito mais avançado: um modelo crítico da concepção natural do homem, transmitida de geração em geração e fonte de toda a sorte de prejuízos eurocêntricos, racistas, sexistas e especistas. Nesse último, emerge um sujeito como um projeto empírico para experimentar que é capaz de fazer um corpo biotecnologicamente modificado. Esse horizonte descortina a ideia de um movimento de desconstrução da supremacia da espécie humana, um êxodo antropológico representado pelo colossal hibridismo da espécie.

Nessa senda, os robôs produziram uma nova espécie e, com eles, novas alternativas de vida. A desesperança dos animais, por exemplo, que antes eram escravizados e massacrados pelo homem em nome do avanço da ciência e do progresso tecnológico, hoje vê diante da possibilidade de uma vida liberta por essas mesmas técnicas. A substituição de animais por robôs em cativeiros, notadamente no tocante aos espaços de confinamento para entretenimento humano, é o símbolo desse poshumanismo que vem para inverter os padrões culturais e educacionais antropocêntricos, para salvaguardar a dignidade animal, como um novo outro nesse novo mundo. A fusão dos animais humanos e não humanos com as máquinas, forja uma interação que tem demonstrado ser uma oportunidade para alcançar uma interpenetração de forças que transformam.

3.2 Repensar as categorias jurídicas na transição para o transhumano e o póshumano

Com essas mutações, é preciso repensar as categorias do direito. Contudo, existem linhas mestras ante os desafios do futuro. Dignidade, igualdade, autonomia e normalidade são categorias entrelaçadas e nenhuma delas pode ser ignorada ou sacrificada. Para que a transição para o poshumano seja aceitável, o respeito à igualdade e à autonomia das pessoas, e a dignidade, devem ser mantidos, pois são condicionantes imprescindíveis para a democracia e aos direitos fundamentais. Entender o contrário é supervalorizar o cientificismo que alteraria por completo a dignidade, conduzindo o mundo à instrumentalização de todas as pessoas naturais (inclusive as não humanas). Nesse cenário, Delmas-Marty (2011, p. 25) alude para o fato de que a humanidade é fruto de dois processos opostos. A hominização, que é a evolução biológica, emergência de uma única espécie como um processo de unificação e universalização; e a humanização, que é a evolução cultural, em um processo de diversificação tendente à relativização. Com as inovações tecnológicas, esses padrões se invertem. A hominização, em decorrência da biologia com a tecnologia, criou diversidade na espécie humana; e a humanização, com a difusão de normas jurídicas comuns (cosmopolitismo), tende a se unificar.

Nesse viés, as falhas culturais são passíveis de remediação através do deslocamento da maturação antropológica para um marco comum a todos os povos: a humanização da mundialização pelo viés da recategorização dos conceitos e das emoções. É imperativo que no século XXI, de um lado, seja discutida e compreendida a relação entre a todas as formas vivas de existência na sociedade companheira multiespécie e, de outro, o avanço da tecnologia, na medida em que a ciência, comumente aceita como o arquétipo do conhecimento válido, não pode ser capaz de impedir a interdisciplinaridade. A combinação cientifica precisa abordar experiências vividas e interações sociais com a natureza entre diversas culturas.

De fato, a realidade do mundo é um tecido fundamental composto de diferenças. De diferentes entidades reais das quais o mundo é feito (WHITEHEAD, 2006). Elas aliam, afastam, aproximam, guerreiam, prendem. As entidades são interações, formam sociedades, nexos, proposições, e todas as categorias das existências. A saída está nessas próprias entidades e a tecnologia é um desses entes. Ela interagiu com todos os outros coletivos existenciais. Portanto, os humanos necessitam escutar as urgências encerradas nesse novo contexto e prestar atenção às novas identidades que vem emergindo, para compreenderem suas relações com seus ambientes naturais. É preciso observar a contemporaneidade para perceber que os ambientes estão sendo rapidamente alterados pelas mudanças dos próprios homens. E são exatamente essas mudanças que têm impactos universais, embora o quanto e como as mais variadas culturas percebem, reagem e se adaptam a essas questões não seja uma medida universal.

É dever da comunidade internacional, portanto, abordar globalmente as questões naturais, combinando visões científicas universais amplamente aceitas da natureza com a diversidade e realidades das visões culturais e, agora, tecnológicas. Isso é emancipação, é a vontade de descobrir e de fazer novas relações. Implementar medidas recomendatórias à efetivação prática da dignidade, para burlar a monetarização dos sentimentos e da comoditização da vida. Os robôs substitutos, portanto, fornecem aos Estados e ao poder econômico mecanismos hábeis para cunhar respostas eficazes à proteção dos direitos fundamentais em tempos de antropoceno. Se a tecnologia vem para salvaguardar a dignidade, há que se tomar o cuidado dela não ser mais um sintoma refratário do mundo moderno.

As tecnologias não podem desligar o humano e o animal de suas premissas constitutivas. A conexão com os valores da dignidade, da justiça e da paz, é o elo de reação às escolhas propostas, para fazer desenvolver de maneira sóbria os poderes técnicos que são uteis à humanidade e a animalidade. É a técnica da arte de prestar atenção, de Isabelle Stengers (SZTUTMAN, 2018). É necessário dominar a arrogância tecnológica, manter em mente os valores de humano e das outras entidades vivas que com ele habitam o mundo, e pensar sempre na melhor decisão comum. É a democracia cosmopolita multiespécie. A decisão comum interessa a todos. Humano e não humanos. E essas decisões descartam fronteiras nacionais e fronteiras entre gerações. E para que essas decisões sejam tomadas de forma consciente, adequada e condizente com os valores de dignidade de todas as pessoas (humanas ou não), é imprescindível ter conhecimento que a tecnologia pode ser usada para salvar a vida de indivíduos e coletivos existenciais ao redor do mundo. A ameaça de extinção, a terrível iminência constante da morte e o sofrimento brutal são, a partir do uso dos robôs animais, perfeitamente evitáveis.

4 Conclusão
Subjetividade

O presente artigo demonstrou a influência da tecnologia na subjetividade, na identidade e na salvaguarda de direitos fundamentais do animal humano e não humano. Em especial, ocupou-se de demonstrar que as tecnologias advindas das ciências computacionais, motivadoras da quarta revolução industrial, notadamente com a internet, são mecanismos facilitadores da proliferação de novas demandas. A web aparece como um cosmos essencial no processo de criação e institucionalização do acesso às informações, encorajando um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos na forma de telecomunicação, e de telepresença, com a e coincidência dos tempos na forma de comunicação assincrônica. Como foi demonstrado, a isso alia-se o fato de que a tecnologia também adentrou na própria subjetividade do povo, modelando pensamentos e provocando o desejo de tornar imortal a existência humana.

A fonte da identidade, portanto, que é a raiz que sustenta o significado e a experiência de um povo, agora perpassa pelo comando dos algoritmos, da manipulação dos dados, da big data e na extensão da corporalidade física. A identidade e a subjetividade internas provocam alteração inclusive no veículo corporal de existência. O corpo eletrônico e a inteligência artificial comandam a virada ontológica da ética antropocêntrica. O deslocamento da atenção exclusiva, que sempre foi centrada no humano, agora indica que novos sujeitos ocupam a arena mundial. Os homens que encastelaram sua figura ao redor da razão ocidental, que conduziram seus povos por diferentes nomes, idiomas e culturas, sempre se consideraram superiores aos outros animais e à natureza. Embora seja assim, na parte 2 deste trabalho evidenciou-se que os homens, incrivelmente, não se consideram estranhos aos robôs e aos ciborgues, muito antes pelo contrário, são esses robonóides que estranham e banalizam a condição humana.

Todas as formas de identidade que foram construídas, pela história, pela geografia, pela biologia, pela memória coletiva, pelos fantasmas individuais, por aparatos de poder e por revelações religiosas, acabaram ruindo ante a utopia e a distopia do transhumanismo e do poshumanismo. Todos esses materiais estão sendo processados em função das tendências tecnológicas e da visão tempo/espaço alterados pela mutação antropológica. Castells afirmou que “a construção social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder” (2018, p. 55).

Tratar da relação dos animais humanos e não humanos com os robôs e os produtos da inteligência artificial teve por fim desvelar o significado das subjetividades e das identidades para justificar – ou ao menos tentar – a quem o Direito irá atribuir titularidade de direitos fundamentais. Para o Direito esse é um grande desafio na medida em que se encontra sempre desafiado frente a atitudes defensivas em torno de princípios comunais. Essa atribuição está relacionada diretamente com os corpos e com as identidades segregados, mas que se unem em prol do princípio de não morrer, de não perder dignidade e de não serem privados da paz.

Os corpos animais humanos e não humanos que sempre foram vitimados, seja por serem negros, femininos, frágeis, animalescos, com penas, rabos, escamas, asas ou patas, agem em conjunto na defesa das identidades oprimidas para não serem alvo de necropolítica. Hoje os sujeitos são constituídos como um prolongamento da resistência comunal e não mais apenas com base em sociedades em processo de desintegração.

Nesse sentido, a verdade, ora utilizada como instrumento de manobra, ora considerada uma salvação doída, é a de que o homem, moldado pelo egoísmo e pelo individualismo moderno, não é mais o centro do universo. O antropocentrismo, embora ainda seja uma corrente ética de uma força inigualável, pois produziu pseudoverdades de caráter absoluto, está cedendo espaço ao hibridismo expresso nas duplas homem/animal, homem/máquina, animal/máquina. Assim, a própria definição do humano encontra-se em xeque, pois não é mais possível encontrar uma particularidade irredutível capaz de diferenciar ou, distanciar, o eu humano do eu animal ou do eu virtual. E essa premissa parte de duas constatações fáticas: a) o homem é um animal; b) a mente humana está sendo dominada pela inteligência artificial.

Percebe-se, nesse viés, que as tecnologias continuam perpetuando o esquecimento dos sonhos da existência, pois o sonho é o lugar da veiculação de afetos traduzido na forma com que afeta o mundo subjetivo e sensível das pessoas, porque o cérebro revive memórias passadas para projetar nas perspectivas do futuro.

Atualmente, fazemos parte de uma geração negacionista de uma absoluta perversidade, que não sonha, mas almeja alcançar a imortalidade no cenário computacional. Eduardo Galeano (2001) afirmou que o sonho deveria ser um direito humano positivado, como uma ferramenta hábil a estruturar o imaginário de outros mundos, e de capacidade de florescimento em toda a plenitude do ser. Isto porque a ausência de sonhos, não em formas metafisicas ou holísticas, mas em perspectivas positivamente sedimentadas em contratos sociais refeitos ao redor do mundo, conduziu a humanidade a grandes crises, como a globalização econômica desenfreada, terrorismos planetários, extremismos políticos e desastres ambientais incontroláveis, das quais agora se pretende uma saída pelas tecnologias. Há uma urgência em que o velho Leviatã seja reestruturado para abraçar os invisíveis.

Todo o sistema predatório e devastador do mundo tem suas origens no modelo relacional que a modernidade forjou: a relação do homem para com a Terra e os animais é de apropriação. Desde a invasão das Américas que os modernos reduziram a humanidade a comunidades pobres, isoladas, egocêntricas e apartadas do diferente. O humano masculino foi colocado em um pedestal de santidade pelo critério científico da racionalidade, e se apartou do mundo natural e de todas as outras formas de viver, de ser e de estar nos territórios existenciais do planeta.

Entretanto, a revolução digital do século XXI produziu também uma reviravolta cultural, evidenciando a senciência, a capacidade e a inteligência como atributos não apenas exclusivos dos humanos. Descobriu-se que outras espécies de animais, que não apenas o homem, são portadores dessas características e que o prolongamento da existência por intermédio de ciborgues, robôs ou inteligências artificiais apenas inverterá os polos de quem é o dominante/dominado.

Contudo, apesar da notória crise da subjetividade humana, esse texto demonstrou e esse era mesmo o propósito do problema posto, que uma consequência positiva advém da utilização de robôs e/ou inteligências artificiais em substituição aos animais em cativeiros. A utilização desses robonóides vem resgatar a dignidade e a vida desses sujeitos que sempre foram empurrados para a marginalidade. A salvaguarda dos direitos fundamentais dos animais, nesse sentido, perpassa por essa substituição: do corpo animal para o corpo eletrônico. É a forma de livrar o imaginário popular da ideia sedimentada de que é perfeitamente normal agir pela banalização dos corpos – dos corpos daqueles que são diferentes do homem padrão: os corpos das mulheres, dos pretos, dos índios, dos estrangeiros, dos animais. E isso tudo acontece a partir da divulgação e transmissão da informação verdadeira de que esses sujeitos invisíveis são vilipendiados minuto a minuto.

É a maneira de atuar, por meio tecnológico, para criar a resistência à opressão. É a aposta de empoderar a resistência, pois ela atua fragmentadamente e a dominação hegemônica capitalista moderna atua articuladamente. Nessa senda, como foi possível argumentar na última parte deste texto, a utilização das ferramentas tecnológicas por substituição dos corpos vivos em cativeiro desnuda o fato de que na sociedade a humanidade não é toda humana. Uma parte da humanidade que sempre foi descartada, por ser considerada sub-humanidade e que sempre habitou a zona do não-ser, agora, com o uso positivo da tecnologia, tem a chance de escapar do darwinismo social que o poder dominante impôs ao longo dos séculos. É uma maneira de incluir no centro das considerações morais e jurídicas aqueles que nunca quiseram morrer ou viver indignamente.

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About: Karen Emilia Antoniazzi Wolf

Karen Emilia Antoniazzi WolfAdvogada, professora e pesquisadora científica.
Doutoranda em Direito Público pela UNISINOS, mestra em Direitos Emergentes pela UFSM e presidente da Comissão Especial de Direitos Animais da OAB/Santa Maria (RS).

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